terça-feira, 31 de março de 2009

Acordo ortográfico: Cartola redimido

Nada como um acordo ortográfico atrás do outro. Por anos, Cartola (1908-1980) amargou como equivocado um verso do antológico samba Fiz por Você o que Pude:

Perdoa-me a comparação, mas fiz uma transfusão
Eis que Jesus me PREMEIA
Surge outro compositor, / jovem de grande valor
Com o mesmo sangue nas veias

Cartola gravou a canção no disco História das Escolas de Samba – Mangueira (1974). Por força da rima, conjugou “premiar” fora do padrão. Constrangido no estúdio, quis corrigir o verso, mas o produtor que o alertou achou que a troca macularia a fluência da letra. Agora, com a nova ortografia, tanto faz “premia” ou “premeia”. Verbos ligados a substantivos com as terminações átonas -ia e -io admitem duas conjugações (negocio / negoceio).

Mais detalhes, no especial que acabei de editar para a revista Língua. Mas, regra geral, os verbos em -ear e -iar, no presente do indicativo e nas formas daí derivadas (presente do subjuntivo e imperativo) ganham i por terem flexão rizotônica (a tônica cai numa sílaba do radical da palavra: delinear = delineio); ou terem a letra na palavra que a gerou: cear = ceiam, ceio. Falamos que alguém “mediou” uma mesa de reunião (e não “mediu” a mesa); então esse alguém “medeia” a reunião.

segunda-feira, 30 de março de 2009

A contracomunicação de Cildo

O festival É Tudo Verdade exibiu na sexta 27 de março o documentário Cildo, sobre o artista Cildo Meirelles, direção de Gustavo Rosa de Moura.

Cildo ganhou fama ao usar a arte em intervenções discursivas, fazendo os meios de circulação dominantes atacarem os próprios discursos dominantes. Em abril de 1970, criou o projeto Coca-Cola, da série Inserções em Circuitos Ideológicos. Aplicava silk-screen com tinta branca vitrificada, que não salta à vista com a garrafa vazia que voltava às fábricas para reuso. Cheio do líquido negro da Coca, o frasco tornava visível a mensagem.

Com a manobra, a ditadura não rastreava a origem de críticas como “yankees go home”, de fatos censurados na imprensa ou denúncias de tortura. Tudo circulava, vendido pela Coca-Cola. "O segredo foi trabalhar na mesma freqüência do objeto de crítica. Fiz simbiose, a imitação do alvo a ponto de confundir a obra com ele. Foi um grafite ambulante, uma contrainformação que trabalhou a idéia de circuito sem controle", disse a este blogueiro.
Cildo inspirou-se nas correntes de santos e garrafas de náufragos. E mostrou a crítica ao sistema transmitida pelo próprio sistema. O documentário Cildo, por isso, é tributo mais do que oportuno.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Os índios sem-nome

A Unesco lançou relatório sobre línguas em extinção. O Brasil é o terceiro com mais idiomas em risco. Já 12 foram extintos dos 190 registrados no país. A maioria está ameaçada, vulnerável, como a língua dos xavantes, no Mato Grosso, que tem só 13 mil falantes.

Em 2005 recebi a notícia de que 86 crianças com menos de 1 ano de idade haviam morrido de fome nas aldeias xavantes, em dois anos. Nada indica que o quadro de fome mudou, desde então.

A morte de uma língua é a de um modo de ver o mundo. O caso xavante é ilustrativo da visão de mundo em forma de idioma.

Bebês xavantes não têm nome. É carga pesada demais para um corpo frágil. Se ganharem um, podem adoecer e morrer. Não raro, só com 2 ou 3 anos ganham resistência para suportar o peso de uma identidade. Até então, todo homem é chamado de menino (“watebremi ñi tsi”) e toda mulher, menina (“ba’õtõre ñi tsi”), informa Aracy Lopes da Silva, em Nomes e Amigos: da prática xavante a uma reflexão sobre os jê (FFLCH-USP, 1986).

Os nomes dos xavantes são associados à evolução da pessoa, ao seu desenvolvimento interior e à idade, que identifica a quantidade de força vital útil à comunidade. Um xavante acaba sua vida como começou: sem nome. Há homens que, ao longo da vida, recebem até 8 nomes.

Algumas crianças xavantes talvez não tenham essa sorte.

terça-feira, 24 de março de 2009

A criatividade por escrito

Há dias comentei a criatividade de Chaplin em roteirizar, sem usar som, uma cega confundindo um mendigo com um milionário. Lembrei agora que Tatiana Belinki (foto) viveu, com o marido Júlio Gouveia, impasse igual ao dividir o Mar Vermelho na era da TV a lenha. O Teatro da Juventude, da Tupi de 1950, encenava Moisés. Ao vivo.

Solução: dois assistentes, um ante o outro, despejam simultaneamente a água de dois baldes. Filmada em 16 mm, a imagem foi projetada no palco, de trás para frente. Momentos assim estimulam, mas não há criatividade que não se facilite por treino. Em A Arte da Ficção (Civilização Brasileira, 1997: 267-9), John Gardner traz exercícios. Uma palhinha:

1. CRIAR SUSPENSE: Faça um parágrafo logo antes da descoberta de um corpo. Descreva como o personagem se aproxima do cadáver, ou o local, ou ambos.
2. DESCREVER PAISAGEM: Descreva uma cena vista por uma velha cujo marido repelente morreu. Não cite marido ou morte.
3. CRIAR DIÁLOGO: entre duas pessoas, cada qual com um segredo. Não conte o segredo. Um marido perde o emprego e hesita contar à mulher; ela tem um amante escondido no quarto.
4. SEM COMPARAÇÃO: Descreva alguém por meio de objetos, paisagem, tempo, mas sem usar comparações (“Ela era como...”).

segunda-feira, 23 de março de 2009

Fora da obra

Há um cacoete comum na retórica da crítica cultural de atribuir a qualidade de uma obra a fatores externos à obra. A vítima da vez, na imprensa paulista e carioca (não vi as demais), é Gran Torino.

O "principal interesse" do filme de Clint Eastwood, dizem os críticos, seria a releitura da carreira que o papel de Walt Kowalski teria permitido ao ator-diretor. O protagonista reacionário de Gran Torino redimiria o inflexível Harry e outros papéis de reaças implacáveis, que Eastwood fez ao longo da carreira.

É uma injustiça a Eastwood e ao filme. Gran Torino é sim um taludo filme com um grande ator (Eastwood) a serviço de um diretor de direita (o mesmo Eastwood) disposto a demonstrar que a turma do rifle também é gente.

O roteiro do filme conta a história que tem de contar enquanto deixa os personagens respirarem, com folga de cenas para cada um. Mas não perde a noção de conjunto nem de consistência e reserva uma pequena quebra de expectativa para o fim, cerejinha.

Enfim, um ponto muito além da mera revisão de carreira.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Criatividade de Chaplin

Enfrentar um obstáculo concreto é o único meio de inventar soluções de texto, já dizia Bergson. Escrevendo uma reportagem de capa sobre criatividade para a revista Língua, lembrei de um documentário em três partes sobre Charles Chaplin (Chaplin Desconhecido), que tinha em casa ainda em formato VHS.
Eis o texto para uma retranca à reportagem principal:

O DILEMA DE CHAPLIN

O cinema falado reduzira a pó a produção de fitas mudas há menos de três anos, mas Charles Chaplin insistia que, se Carlitos ganhasse voz, perderia o encanto que o consagrou. Mas como mostrar, em Luzes da Cidade (City Lights, 1931), sem diálogos e som, que uma cega confunde um mendigo com um milionário?

O comediante era perfeccionista, mas gostava de improvisar. Era famoso por começar filmagens sem roteiro prévio, inspirando-se nos ensaios, que sempre eram filmados. Mas a cena o bloqueara.

Em 534 dias de filmagem, 368 deles foram de set parado, sem progresso, por causa do impasse da cena. Chaplin torraria, em um ano e meio, 118.904 metros de negativo, em 4.337 tomadas.

Na história, o vagabundo se apaixona pela florista cega (Virginia Cherill), que o confunde com um ricaço. Ele não a desencoraja. Perseguido pela polícia, consegue dinheiro para a cirurgia que devolve a visão à moça, mas é preso por causa disso. Anos depois, eles se reencontram e ela descobre que seu benfeitor era, na verdade, um mendigo.

A solução veio em 15 de setembro de 1930:

Em plena Depressão, o vagabundo atravessa a rua, vê um policial e refugia-se num automóvel, para não ser visto. Ao sair pelo outro lado, nota, na calçada, a florista. Ela escuta o barulho e oferece uma rosa. Ele não percebe que é cega. Procura no bolso e entrega sua única moeda, esperando o troco. A moeda cai, a moça tateia no chão, Carlitos nota sua cegueira e se enternece.
O plano da câmera se abre, vemos sair de trás de Carlitos um milionário que bate a porta do automóvel, com força, ao entrar. Com a mão estendida, ela agradece a gorjeta, feito que, para uma vendedora de rua, só um homem rico, dono do carro, poderia realizar. Carlitos sai de mansinho.