quinta-feira, 28 de maio de 2009

Por encomenda

Fazer, por outras necessidades, o que não se faria por opção estética já levou muito artista a contorcionismos criativos.

Vladimir Maiakovsky criou cartazes (ao lado), com o desenhista Rodchenko, para vender brinquedos produzidos em escala na União Soviética do início dos anos 20. Até embalagens de bala e uniformes o poeta desenvolveu.

Clarice Lispector traduziu Agatha Christie e foi ghost writer de textos de etiqueta.

Scott Fitzgerald e William Faulkner foram roteiristas (terminaram dragados por Hollywood).

O pintor Vassily Kandinsky criou logotipos para empresas.

Parnasianos como Bastos Tigre e Olavo Bilac foram profissionais da publicidade, fazendo sonetos para reclames de remédios e cervejarias. É de Tigre o slogan da Bayer (“Se é Bayer, é Bom”).

Criadores de obras nem sempre fáceis ao consumo rápido e à banalização comercial, esses artistas terminaram aceitando, por encomenda, um esquema industrial e desenvolvendo linguagem numa escala artística à parte.

Juntaram, por opção, a fome com a vontade de comer.

terça-feira, 26 de maio de 2009

O adjetivo marginal

O adjetivo virou o primo pobre do substantivo. Em manuais sobre técnicas de escrita, é o vilão das frases. Cortá-lo de um texto, assim como arrancar advérbios e tudo o que encha linguiça, é regra no jornalismo e na administração, sob a alegação de que não alteram a estrutura da frase e o texto fica mais legível com vocábulos sem nuanças e margem para dúvidas. Em raciocínios mais demorados, são considerados mais difíceis de registrar na memória que os substantivos, os termos de relação ou os verbos.

Parte-se do justificável princípio de que quem nos escuta deve ter a mais fiel descrição do que é apresentado, sem ser colocado numa zona de incerteza, como fazem os adjetivos e advérbios que implicam juízo de valor (dizer “bonito/feio” sob o critério de quem, cara pálida, de quem fala ou de quem escuta? Afirmar que “absolutamente” algo ocorrerá é não garantir grande coisa).

Tal princípio, usado indiscriminadamente, criou uma fobia ao adjetivo. Mas ele pode, sim, ser usado para tornar uma descrição mais precisa. “Um cavalo velho e ferido, com cauda macerada” não é o mesmo que dizer "um cavalo com cauda". A intenção de quem enuncia é que pode ditar se uma nuance deve ou não ser eliminada, se é mais preciso qualificar o que se diz ou dizê-lo, simplesmente (o que também é afirmação adjetiva: como saber que uma nuance é necessária?).

Há sempre quem se possa inspirar em Frei Betto (Caros Amigos, novembro de 2002, na foto) e avaliar que quem se dispõe a ser compreendido por todo tipo de gente, e não só por uma elite, deve fazer raciocínios ricos em sinônimos, não necessariamente pobres em adjetivos. É ser capar de não apenas constatar genericamente que a situação social está ruim, mas descrever os sintomas desta situação.

Com adjetivos, se necessário.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Telefone sem fio

Cuidado com as citações. François-Marie Arouet de Voltaire (1694-1778), por exemplo, jamais escreveu a frase lapidar:
Não concordo com o que você diz, mas defenderei até à morte seu direito de dizê-lo.
Elogio do estatuto democrático e da liberdade de expressão, a frase é invenção da inglesa Evellyn Beatrice Hall (pseudônimo: S. G. Tallentyre, 1868-1919), biógrafa de Voltaire. Está em The Friends of Voltaire (1906) e se referia à idéia que a figura dele expressava. Em Lendas, Mitos e Mentiras (Ediouro, 2005), Richard Shenkman relata o caso, que não é isolado:

E, contudo, ela se move!
A frase é improvável num julgamento linha-dura como o que passou Galileu Galilei (1564-1642) por defender conceitos como o de que a Terra girava em volta do Sol, em Diálogos. Nem interessa que a frase tenha sido dita, mesmo baixinho, posto que ninguém a ouviu, mas o mito se espalhou entre seguidores de Galileu, o que o poupou da inglória fama de covarde ante os inquisidores, em 22 de junho de 1633.

Sangue, suor e lágrimas.
Em discurso de 13 de maio de 1940, Winston Churchill (1864-1965) anunciava que os anos seguintes seriam de “privações, sangue, suor e lágrimas”. Mas ele tirou a frase de Byron, que por sua vez a teria tirado de John Donne.

Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.
A carta-testamento de Getúlio Vargas é de José Soares Maciel Filho, presidente do BNDE (1951 e 54) e da Sumoc (atual Banco Central). Vargas encomendara o texto para sua renúncia, adaptou a redação e a assinou em 24 de agosto de 1954.

Tudo o que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda
A frase virou música-título de Roberto e Erasmo Carlos em 1976, mas é do crítico americano Alexander Woollcott (1887-1943).

Um burro diante de dois fardos de feno é incapaz de comer.
A expressão "asno de Buridan", famosa na Idade Média para descrever a indecisão, era atribuída ao filósofo João Buridan desde 1340, mas ele não a cunhou.

Os entes não devem ser multiplicados além da necessidade.
O filósofo inglês Guilherme de Ockham (1280-1349) é muito lembrado por essa "Navalha de Ockham", que ele jamais enunciou.

O Brasil não é um país sério
Barcos franceses invadiram águas territoriais do Brasil à caça de lagostas em 1960. O episódio parou no gabinete de Charles de Gaulle, presidente francês, que prontamente convocou o diplomata Carlos Alves de Souza. Em Um Embaixador em tempos de crise (Francisco Alves, 1979), Souza lembra que, mais tarde, resumira a conversa com de Gaule a um repórter: “Pois é, Le Brésil n´est pas um pays sérieux”. O despacho telegráfico do repórter não atribuíra com clareza a autoria.

James Amado dizia que pouco importava se os poemas atribuídos a Gregório de Matos e Guerra (1636-1695) são de fato dele, mas que o século 16 chegou até nós por uma “poesia chamada Gregório de Matos”. É outra maneira de dizer que as palavras têm um efeito maior que os homens que as pronunciam.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Sínteses de um tempo

Que imagem resumiria a glória selvagem da Antiguidade romana? Qual o ícone de nossa civilização? Há descrições de cenas que parecem concentrar toda uma época num par de frases. Se me fosse dado o luxo de escolher, há duas que têm a força de reter a identidade (que, como se sabe, é contradição) de seu tempo:

Século XX
“A preservação de um arvoredo amado por Goethe dentro de um campo de concentração”
(George Steiner, Gramáticas da Criação, Globo, 2003: 13).

Império Romano
“Os romanos antigos construíram suas obras-primas de arquitetura, os anfiteatros, para animais selvagens se estraçalharem”
(Voltaire, citado por Daniel J. Boorstin em Os Criadores, Civilização Brasileira, 1995: 143)

E outras épocas, que ícones (verbais) teriam?