terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Como fazer uma resenha

Usada em atividades acadêmicas e no jornalismo cultural, a crítica ligeira exige capacidade de síntese conjugada a uma boa argumentação. É preciso dosar síntese e comentário num texto breve sobre uma obra humana. Mas não há receitas. Mesmo assim, não custa lembrar as práticas consagradas:

1) A brevidade não é desculpa para comentários impressionistas, arrogantes e levianos, como afirmar que “o filme é ruim” sem dizer a razão pela qual é ruim.

2) Fisgue o leitor já no começo. Encontre algo interessante, insólito ou intrigante.

3) Frases curtas, diretas. É bom evitar detalhes demasiados em espaço curto. Mas não use o pouco espaço como muleta.

4) Contextualize. Descreva o conteúdo da obra, insira o autor e a questão na tendência a que estão ligados, compare a obra ao conjunto da produção do autor e faça conclusão que resuma ou retome a opinião desenvolvida até ali. Analise o estilo e o modo como personagens são construídos, a evolução do assunto e do raciocínio, e os objetivos da obra.

O jornalista Geraldo Galvão Ferraz, que já foi colunista de Língua, na qual abordou o tema, elaborou uma lista de checagem para resenhas:
· Seu texto está adequado ao público a que se dirige?
· Ele mostra que você refletiu e tem repertório para avaliar a obra?
· Está claro o que o autor destacou como importante na obra?
· Suas opiniões estão equilibradas e fundamentadas?
· Há problemas de correção gramatical na resenha?

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

A anti-retórica de Operação Valquíria

O filme Operação Valquíria pode até revitalizar a carreira de Tom Cruise, mesmo sendo o enézimo filme-história-viva contra o nazismo. A tensão é tal que o ar é fatiável como bisnaga, e é assim que o filme contorna, com consistência, a armadilha da previsibilidade. Previsível porque seu desfecho é manjado: o frustrado atentado a bomba contra Hitler realizado por uma nata de oficiais de seu regime. Consistente porque faz os personagens respirarem em cena e mesmo o mais despudorado oportunismo de alguns dos conspiradores é velado, cheio de hiatos, contido.

O impressionante de fato, a meu ver, é a quase total falta de esforço retórico dos líderes do complô para conquistar conspiradores.

Os candidatos a assassinos de Hitler gastam muito pouca saliva para engrossar suas fileiras. A não ser que a resistência interna fosse um desejo escancarado e tratado com permissividade, coisa que o próprio filme descarta. Há um pisar de ovos no filme, um dito que não pode ser dito e tudo é editado de forma a que se economizem palavras de convencimento. É sua maior qualidade técnica de roteiro, aliás. Por isso, a facilidade por vezes instantânea de conquistar seguidores parece um calo ósseo no filme. É de deixar muita gente saudosa de outro tipo de registro, em que a força da retórica, mesmo manipulativa, faz toda a diferença. Até para os ouvidos do nazista caricato de plantão.

Lembro de Oskar Schindler (Liam Neeson) ao lado do SS Amon Goeth (Ralph Fiennes), sádico comandante do campo de concentração de A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg. O filme tem aqueles excessos spielberguianos, que não é o caso retomar, mas uma cena antológica para os estudos retóricos, que comentei ontem.

domingo, 25 de janeiro de 2009

A lábia de Schindler

Há uma cena antológica, ao menos para os estudos de retórica, de A Lista de Schindler (1993), importante como contraponto para Operação Valquiria, filme que comentarei em seguida.

Goeth (Ralph Fiennes) banca o franco-atirador do alto de sua varanda. O empresário nazista Oscar Schindler (Liam Neeson) quer convencê-lo a parar. Não pode, claro, usar argumentos humanistas. Não teriam chance de impedir o massacre e exporia a si mesmo como simpatizante dos judeus.

Shindler adota, portanto, argumentos aceitáveis a um psicopata da SS.
– Quanto mais olho você... você nunca bebe... um verdadeiro controle de si... o controle é o poder... é o poder... – diz Goeth.
– É por isso que eles nos temem?
– Temos o poder de matar... é por isso que nos temem... porque temos o poder de matar arbitrariamente – responde Goeth.
– Um homem comete um crime... não devia ter cometido... nós o mandamos matar e depois nos sentimos bem... mas isso não é o poder... é justiça... é diferente do poder... o poder é quando temos todas as razões para matar... e não o fazemos... – rebate Schindler.

Goeth o olha, surpreso.
– Acha que isso é o poder?

Schindler se inclina, mira Goeth nos olhos.
– Só o dos imperadores... um homem que cometeu um erro é levado ao imperador... deita-se aos seus pés para implorar piedade... tem a certeza de que vai morrer... e o imperador o perdoa... deixa o tratante ir embora.
– Você está bêbado.

Schindler abre os braços, deixa de se inclinar para Goeth.
– É o poder, Amon ... isso é o poder, bom Amon.

Goeth finge benzê-lo, aos risos.
– Eu o perdôo.

A atitude de Schindler evita ao menos uma morte. Tudo o que fez foi criar um terreno para tornar Goeth mais receptivo. Está no pleno gozo de sua retórica. Mas evidentemente não está dizendo o que pensa. Porque usar a retórica para persuadir não tem relação com verdades, mas com construção de contextos.

É recurso antigo esse, o de preparar o terreno, descrever uma situação facilmente assimilada pelo ouvinte, antes de emitir pra valer a nossa opinião. O francês Philippe Breton, em A Argumentação na Comunicação, chama o expediente de “enquadramento”. Enquadrar é tentar modificar o conjunto de opiniões e valores prévios, partilhados por quem nos ouve, para só então abrir espaço para a nossa opinião. Não posso defender a liberalização das drogas a policiais sem antes derrubar seu natural asco pelo assunto. Sem esse esforço prévio, nem teriam paciência em me ouvir.