quinta-feira, 23 de abril de 2009

Como se faz um conto

Das histórias que pinçou para o recém-lançado Contos filosóficos do mundo inteiro (Ediouro), Jean-Claude Carrière crava preferência por uma historieta de notável sabor anedótico.

Um homem rico e um pobre levam cada um seu filho ao alto de uma montanha. O rico apóia a mão no ombro do seu menino e diz:
– Veja! Um dia tudo isso será seu.
O outro faz o mesmo gesto, mas simplesmente aponta:
– Veja.

Haveria uma visão sobre o humano nas sumárias linhas desse relato, diz Carrière, que não se avexa em tê-lo na categoria de conto filosófico. Fico ruminando o por quê.

Todo conto sempre conta duas histórias, partilha o argentino Ricardo Piglia em Teses sobre o conto, um ensaio de O Laboratório do escritor (Iluminuras, 1994: 37).

Em primeiro plano, há a história de superfície, a situação tal como descrita, movimento a movimento. Enquanto isso, o autor constrói outra história em segredo. A arte do contista, diz Piglia, é cifrar a história 2 nos interstícios da 1.

Que relatos estão em jogo na historinha colhida por Carrière (foto ao lado)? Penso que os seguintes:

História 1: o homem pobre não pode dizer o mesmo que disse o rico a seu filho, pois não tem a oferecer o mesmo, mas a paisagem, de graça, é de todos e de ninguém.

História 2: o mundo tem mais a oferecer que a mera posse dele e admirar-se ante um cotidiano que o olhar tornou opaco é já um legado raro.

É nas possibilidades abertas pela cena 1 que o relato 2 alcança a inflexão de conto. Se isso o torna filosófico, tanto melhor.

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