domingo, 25 de janeiro de 2009

A lábia de Schindler

Há uma cena antológica, ao menos para os estudos de retórica, de A Lista de Schindler (1993), importante como contraponto para Operação Valquiria, filme que comentarei em seguida.

Goeth (Ralph Fiennes) banca o franco-atirador do alto de sua varanda. O empresário nazista Oscar Schindler (Liam Neeson) quer convencê-lo a parar. Não pode, claro, usar argumentos humanistas. Não teriam chance de impedir o massacre e exporia a si mesmo como simpatizante dos judeus.

Shindler adota, portanto, argumentos aceitáveis a um psicopata da SS.
– Quanto mais olho você... você nunca bebe... um verdadeiro controle de si... o controle é o poder... é o poder... – diz Goeth.
– É por isso que eles nos temem?
– Temos o poder de matar... é por isso que nos temem... porque temos o poder de matar arbitrariamente – responde Goeth.
– Um homem comete um crime... não devia ter cometido... nós o mandamos matar e depois nos sentimos bem... mas isso não é o poder... é justiça... é diferente do poder... o poder é quando temos todas as razões para matar... e não o fazemos... – rebate Schindler.

Goeth o olha, surpreso.
– Acha que isso é o poder?

Schindler se inclina, mira Goeth nos olhos.
– Só o dos imperadores... um homem que cometeu um erro é levado ao imperador... deita-se aos seus pés para implorar piedade... tem a certeza de que vai morrer... e o imperador o perdoa... deixa o tratante ir embora.
– Você está bêbado.

Schindler abre os braços, deixa de se inclinar para Goeth.
– É o poder, Amon ... isso é o poder, bom Amon.

Goeth finge benzê-lo, aos risos.
– Eu o perdôo.

A atitude de Schindler evita ao menos uma morte. Tudo o que fez foi criar um terreno para tornar Goeth mais receptivo. Está no pleno gozo de sua retórica. Mas evidentemente não está dizendo o que pensa. Porque usar a retórica para persuadir não tem relação com verdades, mas com construção de contextos.

É recurso antigo esse, o de preparar o terreno, descrever uma situação facilmente assimilada pelo ouvinte, antes de emitir pra valer a nossa opinião. O francês Philippe Breton, em A Argumentação na Comunicação, chama o expediente de “enquadramento”. Enquadrar é tentar modificar o conjunto de opiniões e valores prévios, partilhados por quem nos ouve, para só então abrir espaço para a nossa opinião. Não posso defender a liberalização das drogas a policiais sem antes derrubar seu natural asco pelo assunto. Sem esse esforço prévio, nem teriam paciência em me ouvir.

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