quinta-feira, 2 de abril de 2009

Títulos que choram (ou riem)

Nem sempre títulos da imprensa são apenas sínteses de relatos.

Nelson Rodrigues, por exemplo, não engoliu o fim do ponto de exclamação nas manchetes: “O primeiro Kennedy morreu sem ponto de exclamação, o segundo Kennedy morreu sem ponto de exclamação. E pior: – Hiroxima. Era a primeira bomba atômica. Imaginem se em nossa Paquetá, num domingo, caísse uma bomba atômica. Hiroxima é uma Paquetá. E não se lhe concedeu um ponto de exclamação”.

A indignação de Nelson mostrava que os tempos mudavam. Mas sempre que a síntese coincide com a fuga ao clichê, as soluções oxigenam a cobertura. O Última Hora noticiou em 29/9/1978 a morte de João Paulo I, menos de dois meses depois da do antecessor, Paulo VI:

O papa morreu. De novo

Não só resumo da história como sua significação. O Estado de Minas, sobre protestos do MST nos 500 anos do país, 22/4/2000:

Sem-terra à vista

Titularam de forma burocrática a posse de Lula, em 2002. Mas Diário de S. Paulo pegou o espírito da festa inédita:

O Brasil é da Silva!

A síntese, assim realizada, é o melhor dos mundos. Transborda os limites do espaço estreito. Algo plena (de sentidos) e exata (na leitura dos fatos). Às vezes, com humor:

Fidel chama o Raúl
Extra
, 20/2/2008, na entrega de cargo de Fidel Castro ao irmão, foto de Fidel em pose de vômito.

Fábio Assunção dá
um tempo na carreira
Meia Hora
, 14/11/2008, no afastamento do ator da Globo, por dependência de cocaína.

Títulos definem a interpretação

Gabriel Jareta, jornalista e corinthiano, me chama atenção para a capa do globo.com por volta das 15h de ontem: "Ronaldo vai uniformizado para noitada", e a foto do jogador do Corinthians de mãos dadas com a mulher (não identificada logo de cara pelo site). O Fenômeno aprontou de novo, pensei. Depois, às 17h30, tudo mudou: "Ronaldo sai uniformizado para noite família".

O site percebeu a tempo o risco de bancar um título primeiro de abril. A mudança no título reconfigurou completamente a informação anunciada. E condizia com o que a notícia dizia.

Corrigido a tempo, o deslize do site decerto foi fruto da pressa. Equívoco compreensível, dada a folha corrida do Fenômeno. Mas injusto no pouco tempo em que ficou no ar.

QUANDO O TÍTULO MUDA TUDO
Podemos direcionar o modo como um leitor entenderá uma informação já ao dar um título ou ao escrever o lide (o primeiro parágrafo), pois são eles que definem o principal a ser destacado num acontecimento.

Título é informação que grita. Os problemas surgem ao se errar a dose, quando um título:
g Promete mais do que se tem a oferecer.
g É incompatível com a notícia.
g Sensacionaliza aspectos banais ou descontextualiza frases, insinuando algo que o texto, de fato, não contém.

Nesses três casos, títulos terminam por frustrar quem quer ficar informado. Mesmo que por um par de horas.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

O fim do rato de livraria

Do muito que se diz da leitura no Brasil, a qualidade do ato de ler é a mais difícil de inferir. O consumo de qualidade se mistura, nas estatísticas, ao papel pintado caça-níquel, à obra religiosa e à autoajuda. O brasileiro lê 4,7 livros/ano. Mas muita classe AB só lê depois dos 19 anos se trabalho e escola exigirem.

LEITURA POR OBRIGAÇÃO
g Indicada pela escola (inclui didáticos) = 3,4 livros per capita.
g Quando não se está mais na escola = 1,3 livros/ano.
Fonte: Retratos da Leitura no Brasil (Instituto Pró-Livro /Ibope Inteligência), 2008

Mas gostaria de falar de um tipo escorraçado: o rato de livraria. Houve tempo em que se colhia a novidade ao vagar das prateleiras. Havia o luxo da descoberta. Hoje, há mais editoras que livrarias (1.800). São uns 500 títulos novos, mês. Não há prateleira para tanto. A maioria mofa no estoque virtual: se o sujeito não sabe de antemão o que quer, improvável que peça ao livreiro. A internet tem tudo, mas como selecionar? O rio vai ao mar e caem os achados de qualidade fora das megaeditoras.

EM LIVRARIAS
g Brasileiros compram 5,9 exemplares de livros/ano.
g Não compram muitos novos = 1,1 por ano.
g Mas são muitos os compradores = 36 milhões de pessoas/ano.
Fonte: Retratos da Leitura no Brasil (Instituto Pró-Livro /Ibope Inteligência), 2008

Ah! É mito que Buenos Aires tenha mais livrarias que o Brasil. Lá, são 400, diz o Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, o dobro da capital de São Paulo, o que é significativo.

terça-feira, 31 de março de 2009

Acordo ortográfico: Cartola redimido

Nada como um acordo ortográfico atrás do outro. Por anos, Cartola (1908-1980) amargou como equivocado um verso do antológico samba Fiz por Você o que Pude:

Perdoa-me a comparação, mas fiz uma transfusão
Eis que Jesus me PREMEIA
Surge outro compositor, / jovem de grande valor
Com o mesmo sangue nas veias

Cartola gravou a canção no disco História das Escolas de Samba – Mangueira (1974). Por força da rima, conjugou “premiar” fora do padrão. Constrangido no estúdio, quis corrigir o verso, mas o produtor que o alertou achou que a troca macularia a fluência da letra. Agora, com a nova ortografia, tanto faz “premia” ou “premeia”. Verbos ligados a substantivos com as terminações átonas -ia e -io admitem duas conjugações (negocio / negoceio).

Mais detalhes, no especial que acabei de editar para a revista Língua. Mas, regra geral, os verbos em -ear e -iar, no presente do indicativo e nas formas daí derivadas (presente do subjuntivo e imperativo) ganham i por terem flexão rizotônica (a tônica cai numa sílaba do radical da palavra: delinear = delineio); ou terem a letra na palavra que a gerou: cear = ceiam, ceio. Falamos que alguém “mediou” uma mesa de reunião (e não “mediu” a mesa); então esse alguém “medeia” a reunião.

segunda-feira, 30 de março de 2009

A contracomunicação de Cildo

O festival É Tudo Verdade exibiu na sexta 27 de março o documentário Cildo, sobre o artista Cildo Meirelles, direção de Gustavo Rosa de Moura.

Cildo ganhou fama ao usar a arte em intervenções discursivas, fazendo os meios de circulação dominantes atacarem os próprios discursos dominantes. Em abril de 1970, criou o projeto Coca-Cola, da série Inserções em Circuitos Ideológicos. Aplicava silk-screen com tinta branca vitrificada, que não salta à vista com a garrafa vazia que voltava às fábricas para reuso. Cheio do líquido negro da Coca, o frasco tornava visível a mensagem.

Com a manobra, a ditadura não rastreava a origem de críticas como “yankees go home”, de fatos censurados na imprensa ou denúncias de tortura. Tudo circulava, vendido pela Coca-Cola. "O segredo foi trabalhar na mesma freqüência do objeto de crítica. Fiz simbiose, a imitação do alvo a ponto de confundir a obra com ele. Foi um grafite ambulante, uma contrainformação que trabalhou a idéia de circuito sem controle", disse a este blogueiro.
Cildo inspirou-se nas correntes de santos e garrafas de náufragos. E mostrou a crítica ao sistema transmitida pelo próprio sistema. O documentário Cildo, por isso, é tributo mais do que oportuno.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Os índios sem-nome

A Unesco lançou relatório sobre línguas em extinção. O Brasil é o terceiro com mais idiomas em risco. Já 12 foram extintos dos 190 registrados no país. A maioria está ameaçada, vulnerável, como a língua dos xavantes, no Mato Grosso, que tem só 13 mil falantes.

Em 2005 recebi a notícia de que 86 crianças com menos de 1 ano de idade haviam morrido de fome nas aldeias xavantes, em dois anos. Nada indica que o quadro de fome mudou, desde então.

A morte de uma língua é a de um modo de ver o mundo. O caso xavante é ilustrativo da visão de mundo em forma de idioma.

Bebês xavantes não têm nome. É carga pesada demais para um corpo frágil. Se ganharem um, podem adoecer e morrer. Não raro, só com 2 ou 3 anos ganham resistência para suportar o peso de uma identidade. Até então, todo homem é chamado de menino (“watebremi ñi tsi”) e toda mulher, menina (“ba’õtõre ñi tsi”), informa Aracy Lopes da Silva, em Nomes e Amigos: da prática xavante a uma reflexão sobre os jê (FFLCH-USP, 1986).

Os nomes dos xavantes são associados à evolução da pessoa, ao seu desenvolvimento interior e à idade, que identifica a quantidade de força vital útil à comunidade. Um xavante acaba sua vida como começou: sem nome. Há homens que, ao longo da vida, recebem até 8 nomes.

Algumas crianças xavantes talvez não tenham essa sorte.

terça-feira, 24 de março de 2009

A criatividade por escrito

Há dias comentei a criatividade de Chaplin em roteirizar, sem usar som, uma cega confundindo um mendigo com um milionário. Lembrei agora que Tatiana Belinki (foto) viveu, com o marido Júlio Gouveia, impasse igual ao dividir o Mar Vermelho na era da TV a lenha. O Teatro da Juventude, da Tupi de 1950, encenava Moisés. Ao vivo.

Solução: dois assistentes, um ante o outro, despejam simultaneamente a água de dois baldes. Filmada em 16 mm, a imagem foi projetada no palco, de trás para frente. Momentos assim estimulam, mas não há criatividade que não se facilite por treino. Em A Arte da Ficção (Civilização Brasileira, 1997: 267-9), John Gardner traz exercícios. Uma palhinha:

1. CRIAR SUSPENSE: Faça um parágrafo logo antes da descoberta de um corpo. Descreva como o personagem se aproxima do cadáver, ou o local, ou ambos.
2. DESCREVER PAISAGEM: Descreva uma cena vista por uma velha cujo marido repelente morreu. Não cite marido ou morte.
3. CRIAR DIÁLOGO: entre duas pessoas, cada qual com um segredo. Não conte o segredo. Um marido perde o emprego e hesita contar à mulher; ela tem um amante escondido no quarto.
4. SEM COMPARAÇÃO: Descreva alguém por meio de objetos, paisagem, tempo, mas sem usar comparações (“Ela era como...”).

segunda-feira, 23 de março de 2009

Fora da obra

Há um cacoete comum na retórica da crítica cultural de atribuir a qualidade de uma obra a fatores externos à obra. A vítima da vez, na imprensa paulista e carioca (não vi as demais), é Gran Torino.

O "principal interesse" do filme de Clint Eastwood, dizem os críticos, seria a releitura da carreira que o papel de Walt Kowalski teria permitido ao ator-diretor. O protagonista reacionário de Gran Torino redimiria o inflexível Harry e outros papéis de reaças implacáveis, que Eastwood fez ao longo da carreira.

É uma injustiça a Eastwood e ao filme. Gran Torino é sim um taludo filme com um grande ator (Eastwood) a serviço de um diretor de direita (o mesmo Eastwood) disposto a demonstrar que a turma do rifle também é gente.

O roteiro do filme conta a história que tem de contar enquanto deixa os personagens respirarem, com folga de cenas para cada um. Mas não perde a noção de conjunto nem de consistência e reserva uma pequena quebra de expectativa para o fim, cerejinha.

Enfim, um ponto muito além da mera revisão de carreira.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Criatividade de Chaplin

Enfrentar um obstáculo concreto é o único meio de inventar soluções de texto, já dizia Bergson. Escrevendo uma reportagem de capa sobre criatividade para a revista Língua, lembrei de um documentário em três partes sobre Charles Chaplin (Chaplin Desconhecido), que tinha em casa ainda em formato VHS.
Eis o texto para uma retranca à reportagem principal:

O DILEMA DE CHAPLIN

O cinema falado reduzira a pó a produção de fitas mudas há menos de três anos, mas Charles Chaplin insistia que, se Carlitos ganhasse voz, perderia o encanto que o consagrou. Mas como mostrar, em Luzes da Cidade (City Lights, 1931), sem diálogos e som, que uma cega confunde um mendigo com um milionário?

O comediante era perfeccionista, mas gostava de improvisar. Era famoso por começar filmagens sem roteiro prévio, inspirando-se nos ensaios, que sempre eram filmados. Mas a cena o bloqueara.

Em 534 dias de filmagem, 368 deles foram de set parado, sem progresso, por causa do impasse da cena. Chaplin torraria, em um ano e meio, 118.904 metros de negativo, em 4.337 tomadas.

Na história, o vagabundo se apaixona pela florista cega (Virginia Cherill), que o confunde com um ricaço. Ele não a desencoraja. Perseguido pela polícia, consegue dinheiro para a cirurgia que devolve a visão à moça, mas é preso por causa disso. Anos depois, eles se reencontram e ela descobre que seu benfeitor era, na verdade, um mendigo.

A solução veio em 15 de setembro de 1930:

Em plena Depressão, o vagabundo atravessa a rua, vê um policial e refugia-se num automóvel, para não ser visto. Ao sair pelo outro lado, nota, na calçada, a florista. Ela escuta o barulho e oferece uma rosa. Ele não percebe que é cega. Procura no bolso e entrega sua única moeda, esperando o troco. A moeda cai, a moça tateia no chão, Carlitos nota sua cegueira e se enternece.
O plano da câmera se abre, vemos sair de trás de Carlitos um milionário que bate a porta do automóvel, com força, ao entrar. Com a mão estendida, ela agradece a gorjeta, feito que, para uma vendedora de rua, só um homem rico, dono do carro, poderia realizar. Carlitos sai de mansinho.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Casos da língua com a polícia

O motorista fantasma da Irlanda não é o único caso policial que parou o trânsito por uma questão de idioma. Em setembro de 2006, Marco de Oliveira Prado, dono da empresa MM, da zona leste de São Paulo, foi indiciado por falsificar boletins de ocorrência, carteiras profissionais e atestados de óbito, só para anular multas de trânsito. Clientes de Marco alegavam às juntas de recursos de infrações de quem excedia a velocidade ao levar um parente ao hospital. Mas o esquema furou quando Marco atropelou a gramática: um atestado falava em "aneurisma celebral" e "insulficiência múltipla de órgãos".

Vexame maior foi o de Luís Carlos Fernandes, que em 16 de junho de 2006 foi preso na rodovia Régis Bittencourt, rumo ao Paraná, num Toyota Corolla. Só foi saber a razão após autuado por receptação. A placa estampava um bandeiroso "Frorianópolis". Sim, com r em vez de l. Como não consta que o Detran tenha liberado o uso de variantes da língua, o carro foi apreendido à primeira olhada, por mero contraste ortográfico.

Erro de tradução inventa motorista na Irlanda

Saiu na BBC Brasil de hoje (http://www.bbc.co.uk/). Um erro de tradução do polonês para o inglês fez com que a polícia da Irlanda registrasse mais de 50 infrações de trânsito em nome de um só motorista, relata o jornal Irish Times.

"Prawo Jazdy", o multado, chegou a ser procurado no país por excesso de velocidade e estacionamento irregular.

Mas "Prawo Jazdy" é, na verdade, a expressão polonesa para "carteira de motorista". As duas palavras ficam no canto superior direito da carteira, em letras pouco maiores do que as do real nome do motorista.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Tarso Genro tropeça na tradução

O ministro da Justiça, Tarso Genro, paga caro por usar a terminologia gerencial. O El Pais noticiou que, para Genro, a ministra Dilma Rousseff tem Lula como "o grande obstáculo" à candidatura presidencial dela em 2010.

Hoje, Genro envia desmentido a deus e o mundo: Dilma tem Lula como handicap, ou seja, uma "vantagem". Handicap, diz o Michaelis, é a vantagem dada a rival mais fraco, ou também a desvantagem imposta a um competidor mais forte. Tudo para equilibrar o jogo.

O ministro acreditou que todo mundo saca o inglês corporativo brasileiro. O mesmo engano de usar, em qualquer contexto, o termo outdoor, que só no Brasil designa painéis publicitários ao ar livre. Nos EUA e na Inglaterra, outdoor é toda atividade realizada ao ar livre (o que inclui nadar em piscina não coberta). Já billboard é o quadro de anúncios de rua, que São Paulo, por exemplo, já aboliu.

Nossa linguagem corporativa tende a sinalizar a fórceps que está antenada à matriz. Termos como handicap viram, assim, signo de distinção. Mas o jornal espanhol entendeu o significado dos dicionários: no primeiro sentido (vantagem ao mais fraco) ou no segundo (desvantagem imposta ao forte), boa coisa não quis insinuar o ministro ao dizer que Dilma tem Lula como handicap. Ou seja, sendo afinal "fraca", ela precisa de uma "mãozinha" para decolar e Lula, ao lhe fazer sombra, só pode ser um "obstáculo", um "peso". Para os espanhóis, faz todo o sentido.

Ou será ato falho?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A casa de livro

É o reino encantado dos livreiros, levado ao limite. O artista veneziano Livio De Marchi construiu na Itália uma casa de madeira, com móveis de madeira, todos em forma de livros. De Marchi não é propriamente um artista “plástico”, mais preciso seria chamá-lo de "artista madeireiro”. Parte significativa de sua obra é feita em madeira. Até carro ele criou. Veja http://www.liviodemarchi.com/.

Acordo ortográfico: As palavras mais populares

O Globo de hoje faz um balanço da nova ortografia em suas páginas. A seção "Por dentro dO Globo" (p. 2), dá a palavra "ideia" como campeã nas reportagens do jornal pós-adesão ao acordo, em janeiro. Sob o título "Um jornal de 'ideias'", faz até ranking:

"O termo ganha, até, de palavras comuns como a 'plateia' (sem acento) dos espetáculos do Segundo Caderno e do Rio Show; a 'consequência' (sem trema) das análises de especialistas nas editorias Mundo e Economia; as belas 'joias' (sem acento) do Ela; ou a fiscalização da 'infraestrutura' (sem hífen) pública pelo Rio ou pelo Jornal de Bairros".

Editor do cultural Segundo Caderno, Artur Xexéo se diz surpreso:
- Pensei que as palavras mais populares da nova ortografia seriam "estreia" e "plateia". Mas "ideia" dá de dez. Só no horóscopo aparecem umas três "ideias" por dia.

Quem sabe o excesso de uso no campo simbólico traia uma (inconsciente) ausência prática. Como diria Elio Gaspari, se alguém tiver três ideias novas por semana, contrata que é gênio.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Lula conta como perdeu o dedo

O relato me foi dado por Luiz Inácio Lula da Silva às vésperas do carnaval de 1992:

"Quando sofri acidente no trabalho, em 1963, estava empregado na Metalúrgica Independência, de São Bernardo do Campo. As condições de trabalho eram ruins e, para piorar, tudo ocorreu às duas, três da madrugada. Com um pano, tentando conter o sangue, tive de esperar o início do expediente, às seis, para ser atendido pelo médico da empresa. Alguns meses depois da cirurgia, recebi indenização, 371 mil cruzeiros na época. Havia, então, certo respeito em casos de acidente, o sistema previdenciário não estava tão ruim como agora.
De lá pra cá, a saúde e a segurança continuam sendo tratadas pelas empresas como se não fosse possível haver boas condições de trabalho e também produtividade. A lucratividade é colocada acima de um bom sistema de segurança porque, para as empresas, o que importa é o trabalhador produzir a todo custo, esteja ou não em um local ruim, sob condições precárias e prejudiciais à saúde."

Lula estava no turno da madrugada, quando um colega de torno cochilou de cansaço e soltou a prensa. A máquina não foi criada para a proteção, só produção. Transcrevi o trecho inicial em que ele recorda o episódio, em fevereiro de 1992, para a Revista INST, bimestral do Instituto Nacional de Saúde no Trabalho, da Central Única dos Trabalhadores. Entre 1991 e 1993, atuei no órgão da CUT como editor. A entrevista saiu na edição 7, março/abril de 1992, ano 2, p. 4.

O relato vale pelas circunstâncias, nem sempre lembradas (em 89, disseram até que Lula perdeu o dedo de propósito, para mamar no INSS). E vale pela forma.

Uma entrevista pode ser transcrita como:
1) pingue-pongue tradicional (perguntas + respostas),
2) respostas antecedidas por pequenos títulos (sem as perguntas que as provocaram),
3) texto em 1a pessoa, como se o entrevistado o tivesse escrito.

A 3a opção é útil se desejamos tom menos frio ao conjunto. Não é, claro, texto de punho, mas discurso editado e com tema pontual. Como qualquer entrevista que se lê por aí.