Bráulio Tavares, crítico, compositor e colunista de Língua, me mandou uma série de textos de sua coluna em jornais nordestinos. Destaco o trecho de um, a meu ver a síntese perfeita do que podemos considerar a elefantíase do discurso acadêmico, que contamina até bilhetinhos e e-mails universitários (e não só).
"Recebi um convite para um evento cuja justificativa dizia:
'O objetivo precípuo deste conclave é questionar o fazer literário, dissecar seus processos, balizar seu desenvolvimento e estabelecer metas para a construção de um discurso literário brasileiro nesta época de diluição globalizada e de hegemonia dos discursos popularescos e dos gêneros comerciais'.
Pensei:
'O cara escreve assim para mostrar que domina a linguagem'.
Depois pensei:
'O cara capaz de escrever assim a sério provavelmente só consegue escrever assim. Ele não domina a linguagem. Ele aprendeu a duras penas uma linguagem – chamemo-la burocratês ou academês – e no final deixou-se dominar por ela, a ponto de ser-lhe impossível utilizar outra'”.
quinta-feira, 18 de junho de 2009
quarta-feira, 17 de junho de 2009
Língua é sociedade
Na historia das línguas, há sempre confronto entre as forças de mudança e as de repressão.
No início do século 20, mesmo um linguista de estirpe como Mario Barreto (1879-1931) condenava verbos então recentes, como “revolucionar” e “solucionar”, por já existirem os na época consagrados “revolver” e “solver”.
Como sabemos, ele não teve sucesso, porque a sociedade fala mais alto. O combate a novas formas pode frear a criação descontrolada (lembre a retração de “a nível de”), mas não é capaz de impedir a criação de inúmeras outras formas.
Língua não é só código produtor de sentido, é também social. Não é mero sistema formal, mas corrente de significados em comum.
Muitas inovações populares nem sempre se configuram como aberração linguística, mas escandalizam por serem socialmente micadas. E terminam rejeitadas.
O erro de português pode revelar, não raro, um pensamento influenciado por outra lei gramatical.
Quem opta por “houveram problemas" talvez se fie em “ocorreram problemas”. Se há “garfo” (e não “galfo”), pensa-se, decerto haverá “tarco” (talco); se há “pomar” (não “pomal”), há “carreter” (carretel). E “entrega a domicílio” soa estranho a quem crê que não se entrega “à casa”, mas “em casa” (pela razão que não se “monta a cavalo” por não se “montar a burro”). Daí a preferência pelo condenado “entrega em domicílio”. Mas, enquanto houver incômodo comum, talvez tais deslizes não se fixem no idioma.
A norma gramatical é o costume social dominante. Alguns costumes passam ao sistema da língua, outros não. Há construções recentes que podem se consagrar, ao modo de “Esta varanda bate sol à tarde” ou “Moro subindo essa rua” (exemplos de José Carlos de Azeredo, da Uerj). Ou “Quem aqui o pai fuma?”, dito pelo governador José Serra (acenando acima) numa escola de São Paulo (exemplo de Sírio Possenti, da Unicamp: há idiomas, lembra ele, com estrutura “sujeito-predicado” e outros com “tópico-comentário”. Já o português é misto: em “O Brasil, ele também está em crise”, “Brasil” é o tópico da oração e “ele também...”, o comentário. Daí a construção ter pinta de incorreta, mas ser sintática e socialmente aceita).
Desconfia-se que esses tipos de construção sejam incorporados à gramática do brasileiro médio. Ao fim, ele é quem ri por último.
No início do século 20, mesmo um linguista de estirpe como Mario Barreto (1879-1931) condenava verbos então recentes, como “revolucionar” e “solucionar”, por já existirem os na época consagrados “revolver” e “solver”.
Como sabemos, ele não teve sucesso, porque a sociedade fala mais alto. O combate a novas formas pode frear a criação descontrolada (lembre a retração de “a nível de”), mas não é capaz de impedir a criação de inúmeras outras formas.
Língua não é só código produtor de sentido, é também social. Não é mero sistema formal, mas corrente de significados em comum.
Muitas inovações populares nem sempre se configuram como aberração linguística, mas escandalizam por serem socialmente micadas. E terminam rejeitadas.
O erro de português pode revelar, não raro, um pensamento influenciado por outra lei gramatical.


Desconfia-se que esses tipos de construção sejam incorporados à gramática do brasileiro médio. Ao fim, ele é quem ri por último.
quinta-feira, 28 de maio de 2009
Por encomenda
Fazer, por outras necessidades, o que não se faria por opção estética já levou muito artista a contorcionismos criativos.
Vladimir Maiakovsky criou cartazes (ao lado), com o desenhista Rodchenko, para vender brinquedos produzidos em escala na União Soviética do início dos anos 20. Até embalagens de bala e uniformes o poeta desenvolveu.
Clarice Lispector traduziu Agatha Christie e foi ghost writer de textos de etiqueta.
Scott Fitzgerald e William Faulkner foram roteiristas (terminaram dragados por Hollywood).
O pintor Vassily Kandinsky criou logotipos para empresas.
Parnasianos como Bastos Tigre e Olavo Bilac foram profissionais da publicidade, fazendo sonetos para reclames de remédios e cervejarias. É de Tigre o slogan da Bayer (“Se é Bayer, é Bom”).
Criadores de obras nem sempre fáceis ao consumo rápido e à banalização comercial, esses artistas terminaram aceitando, por encomenda, um esquema industrial e desenvolvendo linguagem numa escala artística à parte.
Juntaram, por opção, a fome com a vontade de comer.

Clarice Lispector traduziu Agatha Christie e foi ghost writer de textos de etiqueta.
Scott Fitzgerald e William Faulkner foram roteiristas (terminaram dragados por Hollywood).
O pintor Vassily Kandinsky criou logotipos para empresas.
Parnasianos como Bastos Tigre e Olavo Bilac foram profissionais da publicidade, fazendo sonetos para reclames de remédios e cervejarias. É de Tigre o slogan da Bayer (“Se é Bayer, é Bom”).
Criadores de obras nem sempre fáceis ao consumo rápido e à banalização comercial, esses artistas terminaram aceitando, por encomenda, um esquema industrial e desenvolvendo linguagem numa escala artística à parte.
Juntaram, por opção, a fome com a vontade de comer.
terça-feira, 26 de maio de 2009
O adjetivo marginal
O adjetivo virou o primo pobre do substantivo. Em manuais sobre técnicas de escrita, é o vilão das frases. Cortá-lo de um texto, assim como arrancar advérbios e tudo o que encha linguiça, é regra no jornalismo e na administração, sob a alegação de que não alteram a estrutura da frase e o texto fica mais legível com vocábulos sem nuanças e margem para dúvidas. Em raciocínios mais demorados, são considerados mais difíceis de registrar na memória que os substantivos, os termos de relação ou os verbos.
Parte-se do justificável princípio de que quem nos escuta deve ter a mais fiel descrição do que é apresentado, sem ser colocado numa zona de incerteza, como fazem os adjetivos e advérbios que implicam juízo de valor (dizer “bonito/feio” sob o critério de quem, cara pálida, de quem fala ou de quem escuta? Afirmar que “absolutamente” algo ocorrerá é não garantir grande coisa).
Tal princípio, usado indiscriminadamente, criou uma fobia ao adjetivo. Mas ele pode, sim, ser usado para tornar uma descrição mais precisa. “Um cavalo velho e ferido, com cauda macerada” não é o mesmo que dizer "um cavalo com cauda". A intenção de quem enuncia é que pode ditar se uma nuance deve ou não ser eliminada, se é mais preciso qualificar o que se diz ou dizê-lo, simplesmente (o que também é afirmação adjetiva: como saber que uma nuance é necessária?).
Há sempre quem se possa inspirar em Frei Betto (Caros Amigos, novembro de 2002, na foto) e avaliar que quem se dispõe a ser compreendido por todo tipo de gente, e não só por uma elite, deve fazer raciocínios ricos em sinônimos, não necessariamente pobres em adjetivos. É ser capar de não apenas constatar genericamente que a situação social está ruim, mas descrever os sintomas desta situação.
Com adjetivos, se necessário.
Parte-se do justificável princípio de que quem nos escuta deve ter a mais fiel descrição do que é apresentado, sem ser colocado numa zona de incerteza, como fazem os adjetivos e advérbios que implicam juízo de valor (dizer “bonito/feio” sob o critério de quem, cara pálida, de quem fala ou de quem escuta? Afirmar que “absolutamente” algo ocorrerá é não garantir grande coisa).
Tal princípio, usado indiscriminadamente, criou uma fobia ao adjetivo. Mas ele pode, sim, ser usado para tornar uma descrição mais precisa. “Um cavalo velho e ferido, com cauda macerada” não é o mesmo que dizer "um cavalo com cauda". A intenção de quem enuncia é que pode ditar se uma nuance deve ou não ser eliminada, se é mais preciso qualificar o que se diz ou dizê-lo, simplesmente (o que também é afirmação adjetiva: como saber que uma nuance é necessária?).

Com adjetivos, se necessário.
quarta-feira, 20 de maio de 2009
Telefone sem fio
Cuidado com as citações. François-Marie Arouet de Voltaire (1694-1778), por exemplo, jamais escreveu a frase lapidar:
Não concordo com o que você diz, mas defenderei até à morte seu direito de dizê-lo.
Elogio do estatuto democrático e da liberdade de expressão, a frase é invenção da inglesa Evellyn Beatrice Hall (pseudônimo: S. G. Tallentyre, 1868-1919), biógrafa de Voltaire. Está em The Friends of Voltaire (1906) e se referia à idéia que a figura dele expressava. Em Lendas, Mitos e Mentiras (Ediouro, 2005), Richard Shenkman relata o caso, que não é isolado:
E, contudo, ela se move!
A frase é improvável num julgamento linha-dura como o que passou Galileu Galilei (1564-1642) por defender conceitos como o de que a Terra girava em volta do Sol, em Diálogos. Nem interessa que a frase tenha sido dita, mesmo baixinho, posto que ninguém a ouviu, mas o mito se espalhou entre seguidores de Galileu, o que o poupou da inglória fama de covarde ante os inquisidores, em 22 de junho de 1633.
Sangue, suor e lágrimas.
Em discurso de 13 de maio de 1940, Winston Churchill (1864-1965) anunciava que os anos seguintes seriam de “privações, sangue, suor e lágrimas”. Mas ele tirou a frase de Byron, que por sua vez a teria tirado de John Donne.
Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.
A carta-testamento de Getúlio Vargas é de José Soares Maciel Filho, presidente do BNDE (1951 e 54) e da Sumoc (atual Banco Central). Vargas encomendara o texto para sua renúncia, adaptou a redação e a assinou em 24 de agosto de 1954.
Tudo o que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda
A frase virou música-título de Roberto e Erasmo Carlos em 1976, mas é do crítico americano Alexander Woollcott (1887-1943).
Um burro diante de dois fardos de feno é incapaz de comer.
A expressão "asno de Buridan", famosa na Idade Média para descrever a indecisão, era atribuída ao filósofo João Buridan desde 1340, mas ele não a cunhou.
Os entes não devem ser multiplicados além da necessidade.
O filósofo inglês Guilherme de Ockham (1280-1349) é muito lembrado por essa "Navalha de Ockham", que ele jamais enunciou.
O Brasil não é um país sério
Barcos franceses invadiram águas territoriais do Brasil à caça de lagostas em 1960. O episódio parou no gabinete de Charles de Gaulle, presidente francês, que prontamente convocou o diplomata Carlos Alves de Souza. Em Um Embaixador em tempos de crise (Francisco Alves, 1979), Souza lembra que, mais tarde, resumira a conversa com de Gaule a um repórter: “Pois é, Le Brésil n´est pas um pays sérieux”. O despacho telegráfico do repórter não atribuíra com clareza a autoria.
James Amado dizia que pouco importava se os poemas atribuídos a Gregório de Matos e Guerra (1636-1695) são de fato dele, mas que o século 16 chegou até nós por uma “poesia chamada Gregório de Matos”. É outra maneira de dizer que as palavras têm um efeito maior que os homens que as pronunciam.
Não concordo com o que você diz, mas defenderei até à morte seu direito de dizê-lo.
Elogio do estatuto democrático e da liberdade de expressão, a frase é invenção da inglesa Evellyn Beatrice Hall (pseudônimo: S. G. Tallentyre, 1868-1919), biógrafa de Voltaire. Está em The Friends of Voltaire (1906) e se referia à idéia que a figura dele expressava. Em Lendas, Mitos e Mentiras (Ediouro, 2005), Richard Shenkman relata o caso, que não é isolado:
E, contudo, ela se move!

Sangue, suor e lágrimas.

Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.


A frase virou música-título de Roberto e Erasmo Carlos em 1976, mas é do crítico americano Alexander Woollcott (1887-1943).
Um burro diante de dois fardos de feno é incapaz de comer.


O filósofo inglês Guilherme de Ockham (1280-1349) é muito lembrado por essa "Navalha de Ockham", que ele jamais enunciou.
O Brasil não é um país sério

James Amado dizia que pouco importava se os poemas atribuídos a Gregório de Matos e Guerra (1636-1695) são de fato dele, mas que o século 16 chegou até nós por uma “poesia chamada Gregório de Matos”. É outra maneira de dizer que as palavras têm um efeito maior que os homens que as pronunciam.
sexta-feira, 15 de maio de 2009
Sínteses de um tempo
Que imagem resumiria a glória selvagem da Antiguidade romana? Qual o ícone de nossa civilização? Há descrições de cenas que parecem concentrar toda uma época num par de frases. Se me fosse dado o luxo de escolher, há duas que têm a força de reter a identidade (que, como se sabe, é contradição) de seu tempo:
Século XX
“A preservação de um arvoredo amado por Goethe dentro de um campo de concentração”
(George Steiner, Gramáticas da Criação, Globo, 2003: 13).
Império Romano
“Os romanos antigos construíram suas obras-primas de arquitetura, os anfiteatros, para animais selvagens se estraçalharem”
(Voltaire, citado por Daniel J. Boorstin em Os Criadores, Civilização Brasileira, 1995: 143)
E outras épocas, que ícones (verbais) teriam?
Século XX

(George Steiner, Gramáticas da Criação, Globo, 2003: 13).
Império Romano

(Voltaire, citado por Daniel J. Boorstin em Os Criadores, Civilização Brasileira, 1995: 143)
E outras épocas, que ícones (verbais) teriam?
quarta-feira, 29 de abril de 2009
Tatuagens verbais

O fenômeno da morfologia corporal é recente, mas em evidência até num Brasil terceiro mercado mundial da tatuagem. O primeiro, EUA, tem 15 mil estúdios e 15% da população tatuada (National Geographic).
O fenômeno não vê fronteiras e motivos. A americana Kari Smith, de 30 anos, leiloou a testa para um site canadense. Sua compatriota Mary Wohlford, de 80, gravou no peito “do not resuscitate", para que os médicos não a reanimassem em caso de um ataque cardíaco.

A tatuagem já sinalizou a reação do sujeito a um sistema marginalizador (o corpo última propriedade de quem não tem). Hoje, sugere que o tatuado é gestor de si mesmo. Ele intuiria no corpo um signo, uma convenção arbitrária. Como a foto está para o objeto e a pegada para o pé, a tatuagem ocuparia o lugar de algo que não se articularia de outro modo. Admitir isso é ver o corpo pertencente à ordem da imaginação, não do físico.
Como os magros que, anorexos, se acham gordos e vice-versa, se vice-versa houver.
segunda-feira, 27 de abril de 2009
Trapalhada tipográfica 2
Para o registro da trapalhada tipográfica que postei neste blog outro dia, com o erro que atormentou Machado de Assis (1839-1908) em 1902, mas só agora localizei a imagem:

A página é de exemplar raríssimo (só localizei dois, um do professor de Direito da USP José Alexandre Tavares Guerreiro e outro do empresário e bibliófilo José Mindlin).
Trata-se, como disse antes, de um dos primeiros exemplares da segunda edição de Poesias Completas, de Machado. O tipógrafo francês trocou a letra e por um a do verbo “cegar” do trecho “a tal extremo lhe cegara o juízo...”, na segunda linha da página VI do prefácio (iluminado em amarelo, acima).
Erro tipográfico, como se sabe, atrapalha o entendimento.

A página é de exemplar raríssimo (só localizei dois, um do professor de Direito da USP José Alexandre Tavares Guerreiro e outro do empresário e bibliófilo José Mindlin).
Trata-se, como disse antes, de um dos primeiros exemplares da segunda edição de Poesias Completas, de Machado. O tipógrafo francês trocou a letra e por um a do verbo “cegar” do trecho “a tal extremo lhe cegara o juízo...”, na segunda linha da página VI do prefácio (iluminado em amarelo, acima).
Erro tipográfico, como se sabe, atrapalha o entendimento.
sexta-feira, 24 de abril de 2009
A antropofagia fonética do Maranhão
O efeito mais curioso dessa predileção é a "antropofagia fonética" que traduz o inglês jamaicano em genial nordestinês.
Como a maioria da população não tem familiaridade com a língua inglesa, mas adora reggae, as músicas do gênero são por lá chamadas de “melôs”.
Bad Reputation virou Melô da Cabra. Pois, de tanto o cantor Monty Montgomery repetir a palavra "bad" estendendo a vogal (/béééééd/), associou-se a música ao berro do animal.
White Witch, de Andrea True Connection, é o Melô do Caranguejo por causa da frase "white witch will gonna get you..." (“gonna get you” soa “ganaguejou”, daí variar para “garaguejo” até ser pronunciado como “caranguejo”).
O nome original de um melô jamaicano passa por uma acomodação fonética, cada reggae rebatizado segundo a sonoridade da letra.
A paródia do inglês macarrônico acabou virando traço cultural.
quinta-feira, 23 de abril de 2009
Como se faz um conto
Das histórias que pinçou para o recém-lançado Contos filosóficos do mundo inteiro (Ediouro), Jean-Claude Carrière crava preferência por uma historieta de notável sabor anedótico.
Um homem rico e um pobre levam cada um seu filho ao alto de uma montanha. O rico apóia a mão no ombro do seu menino e diz:
– Veja! Um dia tudo isso será seu.
O outro faz o mesmo gesto, mas simplesmente aponta:
– Veja.
Haveria uma visão sobre o humano nas sumárias linhas desse relato, diz Carrière, que não se avexa em tê-lo na categoria de conto filosófico. Fico ruminando o por quê.
Todo conto sempre conta duas histórias, partilha o argentino Ricardo Piglia em Teses sobre o conto, um ensaio de O Laboratório do escritor (Iluminuras, 1994: 37).
Em primeiro plano, há a história de superfície, a situação tal como descrita, movimento a movimento. Enquanto isso, o autor constrói outra história em segredo. A arte do contista, diz Piglia, é cifrar a história 2 nos interstícios da 1.
Que relatos estão em jogo na historinha colhida por Carrière (foto ao lado)? Penso que os seguintes:
História 1: o homem pobre não pode dizer o mesmo que disse o rico a seu filho, pois não tem a oferecer o mesmo, mas a paisagem, de graça, é de todos e de ninguém.
História 2: o mundo tem mais a oferecer que a mera posse dele e admirar-se ante um cotidiano que o olhar tornou opaco é já um legado raro.
É nas possibilidades abertas pela cena 1 que o relato 2 alcança a inflexão de conto. Se isso o torna filosófico, tanto melhor.

– Veja! Um dia tudo isso será seu.
O outro faz o mesmo gesto, mas simplesmente aponta:
– Veja.
Haveria uma visão sobre o humano nas sumárias linhas desse relato, diz Carrière, que não se avexa em tê-lo na categoria de conto filosófico. Fico ruminando o por quê.
Todo conto sempre conta duas histórias, partilha o argentino Ricardo Piglia em Teses sobre o conto, um ensaio de O Laboratório do escritor (Iluminuras, 1994: 37).
Em primeiro plano, há a história de superfície, a situação tal como descrita, movimento a movimento. Enquanto isso, o autor constrói outra história em segredo. A arte do contista, diz Piglia, é cifrar a história 2 nos interstícios da 1.

História 1: o homem pobre não pode dizer o mesmo que disse o rico a seu filho, pois não tem a oferecer o mesmo, mas a paisagem, de graça, é de todos e de ninguém.
História 2: o mundo tem mais a oferecer que a mera posse dele e admirar-se ante um cotidiano que o olhar tornou opaco é já um legado raro.
É nas possibilidades abertas pela cena 1 que o relato 2 alcança a inflexão de conto. Se isso o torna filosófico, tanto melhor.
quarta-feira, 22 de abril de 2009
A frieza estatística
A Caixa, dizem os jornais de hoje, vai financiar geladeiras, item que teve o IPI reduzido pelo governo. A iniciativa pode corrigir uma distorção bem brasileira: mais de 2 milhões de casas no país (num universo de 47 milhões) têm televisor, não geladeira (IBGE).
Como anúncios de financiamento, há textos inteiros forjados só por estatísticas como essa. Mas encarar um fenômeno dessa maneira sempre leva gente a achar, por exemplo, que a plebe prefere a comida apodrecendo na cozinha a perder a novela.
Tendência estatística é um câncer do texto que, como o jornalístico, o acadêmico ou o relatório econômico, é feito com intuito de sustentar nossas posições cotidianas. A estatística pura, sem ser humano a lhe dar corpo, pode sacramentar preconceitos.
Por isso, em 2000, editando o suplemento Telejornal (hoje TV & Lazer) do Estadão, fiz reportagem em dupla com Alessandra Penhalver para ver quem se encaixava no índice do IBGE. De porta em porta, fone a fone, achamos gente como Carmem dos Santos, de Carapicuíba, São Paulo, rostos por trás do índice, que nos deram razões para a escolha: 1) geladeira é mais cara que TV; 2) sempre há quem divida o freezer, não o gosto por um canal.
Razões mundanas, jamais insensatas. “Desumanizar” um texto é falar de gente como quem fala de fenômeno climático. É também a fragmentação dos sentidos, o distanciamento, a abordagem opaca sem margem a dúvidas, um julgamento preto no branco a simular uma ordem e previsibilidade sobre o homem e a realidade, que, quase sempre, são desmentidas por apuração mais rigorosa.
Como anúncios de financiamento, há textos inteiros forjados só por estatísticas como essa. Mas encarar um fenômeno dessa maneira sempre leva gente a achar, por exemplo, que a plebe prefere a comida apodrecendo na cozinha a perder a novela.
Tendência estatística é um câncer do texto que, como o jornalístico, o acadêmico ou o relatório econômico, é feito com intuito de sustentar nossas posições cotidianas. A estatística pura, sem ser humano a lhe dar corpo, pode sacramentar preconceitos.
Por isso, em 2000, editando o suplemento Telejornal (hoje TV & Lazer) do Estadão, fiz reportagem em dupla com Alessandra Penhalver para ver quem se encaixava no índice do IBGE. De porta em porta, fone a fone, achamos gente como Carmem dos Santos, de Carapicuíba, São Paulo, rostos por trás do índice, que nos deram razões para a escolha: 1) geladeira é mais cara que TV; 2) sempre há quem divida o freezer, não o gosto por um canal.
Razões mundanas, jamais insensatas. “Desumanizar” um texto é falar de gente como quem fala de fenômeno climático. É também a fragmentação dos sentidos, o distanciamento, a abordagem opaca sem margem a dúvidas, um julgamento preto no branco a simular uma ordem e previsibilidade sobre o homem e a realidade, que, quase sempre, são desmentidas por apuração mais rigorosa.
sexta-feira, 17 de abril de 2009
O pum da vaca
A TV Minuto, do metrô de São Paulo, retomou ontem a notícia:
SETOR LEITEIRO DOS EUA COMBATE
EMISSÃO DE GÁS ESTUFA DAS VACAS
Tucanaram o pum da vaca, pensei, e o tema seria pretexto para discutir o uso viciado dos eufemismos, não fosse sinal de uma síndrome de linguagem maior: a superstição de estilo.
A expressão é de Jorge Luis Borges. Traduz a crença de que toda concisão é sempre uma virtude, ao que se toma por conciso “quem se demora em dez frases breves e não quem maneje bem uma frase longa”, escreveu ele em Discussão (Bertrand Brasil, 1994: 15). É ter em vista “não a eficácia de uma página, mas as habilidades aparentes do escritor”.
A agricultura responde por 14% dos gases estufas do planeta. 1,5 bilhão de ruminantes emite uma dúzia de poluentes (muito metano, 2/3 da amônia no ar, etc.) ao arrotar e soltar pum. Cada vaca emite a mesma quantidade/dia de poluição de um carro.
A TV do metrô resumiu a coisa toda a duas linhas. Direito dela. A situação comunicativa impunha, claro, economia narrativa: mensagens curtas, para monitor, 2 linhas + foto, exibidas a tempo da leitura de um público que pode saltar do vagão a qualquer hora. O tema talvez não se prestasse, sem humor involuntário, a tal tipo de síntese. Mas o fato é que o caso sinaliza a superstição de estilo que tem virado a tônica da comunicação urbana.
A verbalização famélica de um simulacro de objetividade, esse laconismo que é outro modo de ser da inconsistência, talvez seja o efeito colateral comunicativo da era informática. O internetês (escrever “kbça” em vez de “cabeça”) pode ser só a faceta caricata de um fenômeno pouco visível antes da chegada de e-mails, PowerPoints, blogs (olha eu cuspindo no prato) e redes sociais. É notável que a nova febre seja o Twitter, serviço de papos em rede que limita cada texto a 140 caracteres. Eram 475 mil usuários em 2006. Viraram 7 milhões.
Mais virá, depois.
SETOR LEITEIRO DOS EUA COMBATE
EMISSÃO DE GÁS ESTUFA DAS VACAS
Tucanaram o pum da vaca, pensei, e o tema seria pretexto para discutir o uso viciado dos eufemismos, não fosse sinal de uma síndrome de linguagem maior: a superstição de estilo.

A agricultura responde por 14% dos gases estufas do planeta. 1,5 bilhão de ruminantes emite uma dúzia de poluentes (muito metano, 2/3 da amônia no ar, etc.) ao arrotar e soltar pum. Cada vaca emite a mesma quantidade/dia de poluição de um carro.
A TV do metrô resumiu a coisa toda a duas linhas. Direito dela. A situação comunicativa impunha, claro, economia narrativa: mensagens curtas, para monitor, 2 linhas + foto, exibidas a tempo da leitura de um público que pode saltar do vagão a qualquer hora. O tema talvez não se prestasse, sem humor involuntário, a tal tipo de síntese. Mas o fato é que o caso sinaliza a superstição de estilo que tem virado a tônica da comunicação urbana.

Mais virá, depois.
quinta-feira, 2 de abril de 2009
Títulos que choram (ou riem)
Nem sempre títulos da imprensa são apenas sínteses de relatos.
Nelson Rodrigues, por exemplo, não engoliu o fim do ponto de exclamação nas manchetes: “O primeiro Kennedy morreu sem ponto de exclamação, o segundo Kennedy morreu sem ponto de exclamação. E pior: – Hiroxima. Era a primeira bomba atômica. Imaginem se em nossa Paquetá, num domingo, caísse uma bomba atômica. Hiroxima é uma Paquetá. E não se lhe concedeu um ponto de exclamação”.
A indignação de Nelson mostrava que os tempos mudavam. Mas sempre que a síntese coincide com a fuga ao clichê, as soluções oxigenam a cobertura. O Última Hora noticiou em 29/9/1978 a morte de João Paulo I, menos de dois meses depois da do antecessor, Paulo VI:
O papa morreu. De novo
Não só resumo da história como sua significação. O Estado de Minas, sobre protestos do MST nos 500 anos do país, 22/4/2000:
Sem-terra à vista
Titularam de forma burocrática a posse de Lula, em 2002. Mas Diário de S. Paulo pegou o espírito da festa inédita:
O Brasil é da Silva!
A síntese, assim realizada, é o melhor dos mundos. Transborda os limites do espaço estreito. Algo plena (de sentidos) e exata (na leitura dos fatos). Às vezes, com humor:
Fidel chama o Raúl
Extra, 20/2/2008, na entrega de cargo de Fidel Castro ao irmão, foto de Fidel em pose de vômito.
Fábio Assunção dá
um tempo na carreira
Meia Hora, 14/11/2008, no afastamento do ator da Globo, por dependência de cocaína.

A indignação de Nelson mostrava que os tempos mudavam. Mas sempre que a síntese coincide com a fuga ao clichê, as soluções oxigenam a cobertura. O Última Hora noticiou em 29/9/1978 a morte de João Paulo I, menos de dois meses depois da do antecessor, Paulo VI:
O papa morreu. De novo
Não só resumo da história como sua significação. O Estado de Minas, sobre protestos do MST nos 500 anos do país, 22/4/2000:
Sem-terra à vista
Titularam de forma burocrática a posse de Lula, em 2002. Mas Diário de S. Paulo pegou o espírito da festa inédita:
O Brasil é da Silva!
A síntese, assim realizada, é o melhor dos mundos. Transborda os limites do espaço estreito. Algo plena (de sentidos) e exata (na leitura dos fatos). Às vezes, com humor:

Extra, 20/2/2008, na entrega de cargo de Fidel Castro ao irmão, foto de Fidel em pose de vômito.
Fábio Assunção dá
um tempo na carreira
Meia Hora, 14/11/2008, no afastamento do ator da Globo, por dependência de cocaína.
Marcadores:
Comunicação,
Técnicas de texto
Títulos definem a interpretação
Gabriel Jareta, jornalista e corinthiano, me chama atenção para a capa do globo.com por volta das 15h de ontem: "Ronaldo vai uniformizado para noitada", e a foto do jogador do Corinthians de mãos dadas com a mulher (não identificada logo de cara pelo site). O Fenômeno aprontou de novo, pensei. Depois, às 17h30, tudo mudou: "Ronaldo sai uniformizado para noite família".
O site percebeu a tempo o risco de bancar um título primeiro de abril. A mudança no título reconfigurou completamente a informação anunciada. E condizia com o que a notícia dizia.
Corrigido a tempo, o deslize do site decerto foi fruto da pressa. Equívoco compreensível, dada a folha corrida do Fenômeno. Mas injusto no pouco tempo em que ficou no ar.
O site percebeu a tempo o risco de bancar um título primeiro de abril. A mudança no título reconfigurou completamente a informação anunciada. E condizia com o que a notícia dizia.
Corrigido a tempo, o deslize do site decerto foi fruto da pressa. Equívoco compreensível, dada a folha corrida do Fenômeno. Mas injusto no pouco tempo em que ficou no ar.

QUANDO O TÍTULO MUDA TUDO
Podemos direcionar o modo como um leitor entenderá uma informação já ao dar um título ou ao escrever o lide (o primeiro parágrafo), pois são eles que definem o principal a ser destacado num acontecimento.
Título é informação que grita. Os problemas surgem ao se errar a dose, quando um título:
g Promete mais do que se tem a oferecer.
g É incompatível com a notícia.
g Sensacionaliza aspectos banais ou descontextualiza frases, insinuando algo que o texto, de fato, não contém.
Nesses três casos, títulos terminam por frustrar quem quer ficar informado. Mesmo que por um par de horas.
Título é informação que grita. Os problemas surgem ao se errar a dose, quando um título:
g Promete mais do que se tem a oferecer.
g É incompatível com a notícia.
g Sensacionaliza aspectos banais ou descontextualiza frases, insinuando algo que o texto, de fato, não contém.
Nesses três casos, títulos terminam por frustrar quem quer ficar informado. Mesmo que por um par de horas.
Marcadores:
Comunicação,
Técnicas de texto
quarta-feira, 1 de abril de 2009
O fim do rato de livraria
Do muito que se diz da leitura no Brasil, a qualidade do ato de ler é a mais difícil de inferir. O consumo de qualidade se mistura, nas estatísticas, ao papel pintado caça-níquel, à obra religiosa e à autoajuda. O brasileiro lê 4,7 livros/ano. Mas muita classe AB só lê depois dos 19 anos se trabalho e escola exigirem.
LEITURA POR OBRIGAÇÃO
g Indicada pela escola (inclui didáticos) = 3,4 livros per capita.
g Quando não se está mais na escola = 1,3 livros/ano.
Fonte: Retratos da Leitura no Brasil (Instituto Pró-Livro /Ibope Inteligência), 2008
Mas gostaria de falar de um tipo escorraçado: o rato de livraria. Houve tempo em que se colhia a novidade ao vagar das prateleiras. Havia o luxo da descoberta. Hoje, há mais editoras que livrarias (1.800). São uns 500 títulos novos, mês. Não há prateleira para tanto. A maioria mofa no estoque virtual: se o sujeito não sabe de antemão o que quer, improvável que peça ao livreiro. A internet tem tudo, mas como selecionar? O rio vai ao mar e caem os achados de qualidade fora das megaeditoras.
EM LIVRARIAS
g Brasileiros compram 5,9 exemplares de livros/ano.
g Não compram muitos novos = 1,1 por ano.
g Mas são muitos os compradores = 36 milhões de pessoas/ano.
Fonte: Retratos da Leitura no Brasil (Instituto Pró-Livro /Ibope Inteligência), 2008
Ah! É mito que Buenos Aires tenha mais livrarias que o Brasil. Lá, são 400, diz o Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, o dobro da capital de São Paulo, o que é significativo.
LEITURA POR OBRIGAÇÃO
g Indicada pela escola (inclui didáticos) = 3,4 livros per capita.
g Quando não se está mais na escola = 1,3 livros/ano.
Fonte: Retratos da Leitura no Brasil (Instituto Pró-Livro /Ibope Inteligência), 2008
Mas gostaria de falar de um tipo escorraçado: o rato de livraria. Houve tempo em que se colhia a novidade ao vagar das prateleiras. Havia o luxo da descoberta. Hoje, há mais editoras que livrarias (1.800). São uns 500 títulos novos, mês. Não há prateleira para tanto. A maioria mofa no estoque virtual: se o sujeito não sabe de antemão o que quer, improvável que peça ao livreiro. A internet tem tudo, mas como selecionar? O rio vai ao mar e caem os achados de qualidade fora das megaeditoras.
EM LIVRARIAS
g Brasileiros compram 5,9 exemplares de livros/ano.
g Não compram muitos novos = 1,1 por ano.
g Mas são muitos os compradores = 36 milhões de pessoas/ano.
Fonte: Retratos da Leitura no Brasil (Instituto Pró-Livro /Ibope Inteligência), 2008
Ah! É mito que Buenos Aires tenha mais livrarias que o Brasil. Lá, são 400, diz o Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, o dobro da capital de São Paulo, o que é significativo.
Assinar:
Postagens (Atom)