quarta-feira, 29 de abril de 2009

Tatuagens verbais

O designer sueco Marc Strömberg, de 22 anos, editou o terceiro exemplar do fanzine Tare Lugnt na própria perna. A intenção não é, evidentemente, ornamental, mas fazer do corpo um caderno ambulante.

O fenômeno da morfologia corporal é recente, mas em evidência até num Brasil terceiro mercado mundial da tatuagem. O primeiro, EUA, tem 15 mil estúdios e 15% da população tatuada (National Geographic).

A modalidade verbal garantiu ao menos um caso bizarro por aqui: o motoboy Robson Pereira Granja matou o amante de sua mulher e teve o deleite de escrever no braço o nome da vítima e a data do crime.

O fenômeno não vê fronteiras e motivos. A americana Kari Smith, de 30 anos, leiloou a testa para um site canadense. Sua compatriota Mary Wohlford, de 80, gravou no peito “do not resuscitate", para que os médicos não a reanimassem em caso de um ataque cardíaco.

Estúdios do Brasil estimam que a tatuagem verbal só se tornou rotineira nestes cinco anos e 3% dos clientes tatua nomes, juras, letras de música, às vezes frases inteiras. Não mais, que o gênero sofre de “limitação do suporte": não há lugar no corpo para uma gramática de frases longas.

A tatuagem já sinalizou a reação do sujeito a um sistema marginalizador (o corpo última propriedade de quem não tem). Hoje, sugere que o tatuado é gestor de si mesmo. Ele intuiria no corpo um signo, uma convenção arbitrária. Como a foto está para o objeto e a pegada para o pé, a tatuagem ocuparia o lugar de algo que não se articularia de outro modo. Admitir isso é ver o corpo pertencente à ordem da imaginação, não do físico.

Como os magros que, anorexos, se acham gordos e vice-versa, se vice-versa houver.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Trapalhada tipográfica 2

Para o registro da trapalhada tipográfica que postei neste blog outro dia, com o erro que atormentou Machado de Assis (1839-1908) em 1902, mas só agora localizei a imagem:


A página é de exemplar raríssimo (só localizei dois, um do professor de Direito da USP José Alexandre Tavares Guerreiro e outro do empresário e bibliófilo José Mindlin).

Trata-se, como disse antes, de um dos primeiros exemplares da segunda edição de Poesias Completas, de Machado. O tipógrafo francês trocou a letra e por um a do verbo “cegar” do trecho “a tal extremo lhe cegara o juízo...”, na segunda linha da página VI do prefácio (iluminado em amarelo, acima).

Erro tipográfico, como se sabe, atrapalha o entendimento.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A antropofagia fonética do Maranhão

A jornalista Flávia Perin, então aluna de uma de minhas oficinas de redação, foi quem me chamou atenção para o fenômeno, flagrado acima pelo fotógrafo Meireles Jr. para a revista Língua. A capital do Maranhão, São Luís, virou a “Jamaica brasileira” porque o reggae reina nos bares, nas rádios, na preferência e na linguagem da população, desde 1985.

O efeito mais curioso dessa predileção é a "antropofagia fonética" que traduz o inglês jamaicano em genial nordestinês.

Como a maioria da população não tem familiaridade com a língua inglesa, mas adora reggae, as músicas do gênero são por lá chamadas de “melôs”.

Bad Reputation virou Melô da Cabra. Pois, de tanto o cantor Monty Montgomery repetir a palavra "bad" estendendo a vogal (/béééééd/), associou-se a música ao berro do animal.

White Witch, de Andrea True Connection, é o Melô do Caranguejo por causa da frase "white witch will gonna get you..." (“gonna get you” soa “ganaguejou”, daí variar para “garaguejo” até ser pronunciado como “caranguejo”).

O nome original de um melô jamaicano passa por uma acomodação fonética, cada reggae rebatizado segundo a sonoridade da letra.

A paródia do inglês macarrônico acabou virando traço cultural.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Como se faz um conto

Das histórias que pinçou para o recém-lançado Contos filosóficos do mundo inteiro (Ediouro), Jean-Claude Carrière crava preferência por uma historieta de notável sabor anedótico.

Um homem rico e um pobre levam cada um seu filho ao alto de uma montanha. O rico apóia a mão no ombro do seu menino e diz:
– Veja! Um dia tudo isso será seu.
O outro faz o mesmo gesto, mas simplesmente aponta:
– Veja.

Haveria uma visão sobre o humano nas sumárias linhas desse relato, diz Carrière, que não se avexa em tê-lo na categoria de conto filosófico. Fico ruminando o por quê.

Todo conto sempre conta duas histórias, partilha o argentino Ricardo Piglia em Teses sobre o conto, um ensaio de O Laboratório do escritor (Iluminuras, 1994: 37).

Em primeiro plano, há a história de superfície, a situação tal como descrita, movimento a movimento. Enquanto isso, o autor constrói outra história em segredo. A arte do contista, diz Piglia, é cifrar a história 2 nos interstícios da 1.

Que relatos estão em jogo na historinha colhida por Carrière (foto ao lado)? Penso que os seguintes:

História 1: o homem pobre não pode dizer o mesmo que disse o rico a seu filho, pois não tem a oferecer o mesmo, mas a paisagem, de graça, é de todos e de ninguém.

História 2: o mundo tem mais a oferecer que a mera posse dele e admirar-se ante um cotidiano que o olhar tornou opaco é já um legado raro.

É nas possibilidades abertas pela cena 1 que o relato 2 alcança a inflexão de conto. Se isso o torna filosófico, tanto melhor.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

A frieza estatística

A Caixa, dizem os jornais de hoje, vai financiar geladeiras, item que teve o IPI reduzido pelo governo. A iniciativa pode corrigir uma distorção bem brasileira: mais de 2 milhões de casas no país (num universo de 47 milhões) têm televisor, não geladeira (IBGE).

Como anúncios de financiamento, há textos inteiros forjados só por estatísticas como essa. Mas encarar um fenômeno dessa maneira sempre leva gente a achar, por exemplo, que a plebe prefere a comida apodrecendo na cozinha a perder a novela.

Tendência estatística é um câncer do texto que, como o jornalístico, o acadêmico ou o relatório econômico, é feito com intuito de sustentar nossas posições cotidianas. A estatística pura, sem ser humano a lhe dar corpo, pode sacramentar preconceitos.

Por isso, em 2000, editando o suplemento Telejornal (hoje TV & Lazer) do Estadão, fiz reportagem em dupla com Alessandra Penhalver para ver quem se encaixava no índice do IBGE. De porta em porta, fone a fone, achamos gente como Carmem dos Santos, de Carapicuíba, São Paulo, rostos por trás do índice, que nos deram razões para a escolha: 1) geladeira é mais cara que TV; 2) sempre há quem divida o freezer, não o gosto por um canal.

Razões mundanas, jamais insensatas. “Desumanizar” um texto é falar de gente como quem fala de fenômeno climático. É também a fragmentação dos sentidos, o distanciamento, a abordagem opaca sem margem a dúvidas, um julgamento preto no branco a simular uma ordem e previsibilidade sobre o homem e a realidade, que, quase sempre, são desmentidas por apuração mais rigorosa.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

O pum da vaca

A TV Minuto, do metrô de São Paulo, retomou ontem a notícia:

SETOR LEITEIRO DOS EUA COMBATE
EMISSÃO DE GÁS ESTUFA DAS VACAS

Tucanaram o pum da vaca, pensei, e o tema seria pretexto para discutir o uso viciado dos eufemismos, não fosse sinal de uma síndrome de linguagem maior: a superstição de estilo.

A expressão é de Jorge Luis Borges. Traduz a crença de que toda concisão é sempre uma virtude, ao que se toma por conciso “quem se demora em dez frases breves e não quem maneje bem uma frase longa”, escreveu ele em Discussão (Bertrand Brasil, 1994: 15). É ter em vista “não a eficácia de uma página, mas as habilidades aparentes do escritor”.

A agricultura responde por 14% dos gases estufas do planeta. 1,5 bilhão de ruminantes emite uma dúzia de poluentes (muito metano, 2/3 da amônia no ar, etc.) ao arrotar e soltar pum. Cada vaca emite a mesma quantidade/dia de poluição de um carro.

A TV do metrô resumiu a coisa toda a duas linhas. Direito dela. A situação comunicativa impunha, claro, economia narrativa: mensagens curtas, para monitor, 2 linhas + foto, exibidas a tempo da leitura de um público que pode saltar do vagão a qualquer hora. O tema talvez não se prestasse, sem humor involuntário, a tal tipo de síntese. Mas o fato é que o caso sinaliza a superstição de estilo que tem virado a tônica da comunicação urbana.

A verbalização famélica de um simulacro de objetividade, esse laconismo que é outro modo de ser da inconsistência, talvez seja o efeito colateral comunicativo da era informática. O internetês (escrever “kbça” em vez de “cabeça”) pode ser só a faceta caricata de um fenômeno pouco visível antes da chegada de e-mails, PowerPoints, blogs (olha eu cuspindo no prato) e redes sociais. É notável que a nova febre seja o Twitter, serviço de papos em rede que limita cada texto a 140 caracteres. Eram 475 mil usuários em 2006. Viraram 7 milhões.

Mais virá, depois.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Títulos que choram (ou riem)

Nem sempre títulos da imprensa são apenas sínteses de relatos.

Nelson Rodrigues, por exemplo, não engoliu o fim do ponto de exclamação nas manchetes: “O primeiro Kennedy morreu sem ponto de exclamação, o segundo Kennedy morreu sem ponto de exclamação. E pior: – Hiroxima. Era a primeira bomba atômica. Imaginem se em nossa Paquetá, num domingo, caísse uma bomba atômica. Hiroxima é uma Paquetá. E não se lhe concedeu um ponto de exclamação”.

A indignação de Nelson mostrava que os tempos mudavam. Mas sempre que a síntese coincide com a fuga ao clichê, as soluções oxigenam a cobertura. O Última Hora noticiou em 29/9/1978 a morte de João Paulo I, menos de dois meses depois da do antecessor, Paulo VI:

O papa morreu. De novo

Não só resumo da história como sua significação. O Estado de Minas, sobre protestos do MST nos 500 anos do país, 22/4/2000:

Sem-terra à vista

Titularam de forma burocrática a posse de Lula, em 2002. Mas Diário de S. Paulo pegou o espírito da festa inédita:

O Brasil é da Silva!

A síntese, assim realizada, é o melhor dos mundos. Transborda os limites do espaço estreito. Algo plena (de sentidos) e exata (na leitura dos fatos). Às vezes, com humor:

Fidel chama o Raúl
Extra
, 20/2/2008, na entrega de cargo de Fidel Castro ao irmão, foto de Fidel em pose de vômito.

Fábio Assunção dá
um tempo na carreira
Meia Hora
, 14/11/2008, no afastamento do ator da Globo, por dependência de cocaína.

Títulos definem a interpretação

Gabriel Jareta, jornalista e corinthiano, me chama atenção para a capa do globo.com por volta das 15h de ontem: "Ronaldo vai uniformizado para noitada", e a foto do jogador do Corinthians de mãos dadas com a mulher (não identificada logo de cara pelo site). O Fenômeno aprontou de novo, pensei. Depois, às 17h30, tudo mudou: "Ronaldo sai uniformizado para noite família".

O site percebeu a tempo o risco de bancar um título primeiro de abril. A mudança no título reconfigurou completamente a informação anunciada. E condizia com o que a notícia dizia.

Corrigido a tempo, o deslize do site decerto foi fruto da pressa. Equívoco compreensível, dada a folha corrida do Fenômeno. Mas injusto no pouco tempo em que ficou no ar.

QUANDO O TÍTULO MUDA TUDO
Podemos direcionar o modo como um leitor entenderá uma informação já ao dar um título ou ao escrever o lide (o primeiro parágrafo), pois são eles que definem o principal a ser destacado num acontecimento.

Título é informação que grita. Os problemas surgem ao se errar a dose, quando um título:
g Promete mais do que se tem a oferecer.
g É incompatível com a notícia.
g Sensacionaliza aspectos banais ou descontextualiza frases, insinuando algo que o texto, de fato, não contém.

Nesses três casos, títulos terminam por frustrar quem quer ficar informado. Mesmo que por um par de horas.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

O fim do rato de livraria

Do muito que se diz da leitura no Brasil, a qualidade do ato de ler é a mais difícil de inferir. O consumo de qualidade se mistura, nas estatísticas, ao papel pintado caça-níquel, à obra religiosa e à autoajuda. O brasileiro lê 4,7 livros/ano. Mas muita classe AB só lê depois dos 19 anos se trabalho e escola exigirem.

LEITURA POR OBRIGAÇÃO
g Indicada pela escola (inclui didáticos) = 3,4 livros per capita.
g Quando não se está mais na escola = 1,3 livros/ano.
Fonte: Retratos da Leitura no Brasil (Instituto Pró-Livro /Ibope Inteligência), 2008

Mas gostaria de falar de um tipo escorraçado: o rato de livraria. Houve tempo em que se colhia a novidade ao vagar das prateleiras. Havia o luxo da descoberta. Hoje, há mais editoras que livrarias (1.800). São uns 500 títulos novos, mês. Não há prateleira para tanto. A maioria mofa no estoque virtual: se o sujeito não sabe de antemão o que quer, improvável que peça ao livreiro. A internet tem tudo, mas como selecionar? O rio vai ao mar e caem os achados de qualidade fora das megaeditoras.

EM LIVRARIAS
g Brasileiros compram 5,9 exemplares de livros/ano.
g Não compram muitos novos = 1,1 por ano.
g Mas são muitos os compradores = 36 milhões de pessoas/ano.
Fonte: Retratos da Leitura no Brasil (Instituto Pró-Livro /Ibope Inteligência), 2008

Ah! É mito que Buenos Aires tenha mais livrarias que o Brasil. Lá, são 400, diz o Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, o dobro da capital de São Paulo, o que é significativo.