quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Casos da língua com a polícia

O motorista fantasma da Irlanda não é o único caso policial que parou o trânsito por uma questão de idioma. Em setembro de 2006, Marco de Oliveira Prado, dono da empresa MM, da zona leste de São Paulo, foi indiciado por falsificar boletins de ocorrência, carteiras profissionais e atestados de óbito, só para anular multas de trânsito. Clientes de Marco alegavam às juntas de recursos de infrações de quem excedia a velocidade ao levar um parente ao hospital. Mas o esquema furou quando Marco atropelou a gramática: um atestado falava em "aneurisma celebral" e "insulficiência múltipla de órgãos".

Vexame maior foi o de Luís Carlos Fernandes, que em 16 de junho de 2006 foi preso na rodovia Régis Bittencourt, rumo ao Paraná, num Toyota Corolla. Só foi saber a razão após autuado por receptação. A placa estampava um bandeiroso "Frorianópolis". Sim, com r em vez de l. Como não consta que o Detran tenha liberado o uso de variantes da língua, o carro foi apreendido à primeira olhada, por mero contraste ortográfico.

Erro de tradução inventa motorista na Irlanda

Saiu na BBC Brasil de hoje (http://www.bbc.co.uk/). Um erro de tradução do polonês para o inglês fez com que a polícia da Irlanda registrasse mais de 50 infrações de trânsito em nome de um só motorista, relata o jornal Irish Times.

"Prawo Jazdy", o multado, chegou a ser procurado no país por excesso de velocidade e estacionamento irregular.

Mas "Prawo Jazdy" é, na verdade, a expressão polonesa para "carteira de motorista". As duas palavras ficam no canto superior direito da carteira, em letras pouco maiores do que as do real nome do motorista.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Tarso Genro tropeça na tradução

O ministro da Justiça, Tarso Genro, paga caro por usar a terminologia gerencial. O El Pais noticiou que, para Genro, a ministra Dilma Rousseff tem Lula como "o grande obstáculo" à candidatura presidencial dela em 2010.

Hoje, Genro envia desmentido a deus e o mundo: Dilma tem Lula como handicap, ou seja, uma "vantagem". Handicap, diz o Michaelis, é a vantagem dada a rival mais fraco, ou também a desvantagem imposta a um competidor mais forte. Tudo para equilibrar o jogo.

O ministro acreditou que todo mundo saca o inglês corporativo brasileiro. O mesmo engano de usar, em qualquer contexto, o termo outdoor, que só no Brasil designa painéis publicitários ao ar livre. Nos EUA e na Inglaterra, outdoor é toda atividade realizada ao ar livre (o que inclui nadar em piscina não coberta). Já billboard é o quadro de anúncios de rua, que São Paulo, por exemplo, já aboliu.

Nossa linguagem corporativa tende a sinalizar a fórceps que está antenada à matriz. Termos como handicap viram, assim, signo de distinção. Mas o jornal espanhol entendeu o significado dos dicionários: no primeiro sentido (vantagem ao mais fraco) ou no segundo (desvantagem imposta ao forte), boa coisa não quis insinuar o ministro ao dizer que Dilma tem Lula como handicap. Ou seja, sendo afinal "fraca", ela precisa de uma "mãozinha" para decolar e Lula, ao lhe fazer sombra, só pode ser um "obstáculo", um "peso". Para os espanhóis, faz todo o sentido.

Ou será ato falho?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A casa de livro

É o reino encantado dos livreiros, levado ao limite. O artista veneziano Livio De Marchi construiu na Itália uma casa de madeira, com móveis de madeira, todos em forma de livros. De Marchi não é propriamente um artista “plástico”, mais preciso seria chamá-lo de "artista madeireiro”. Parte significativa de sua obra é feita em madeira. Até carro ele criou. Veja http://www.liviodemarchi.com/.

Acordo ortográfico: As palavras mais populares

O Globo de hoje faz um balanço da nova ortografia em suas páginas. A seção "Por dentro dO Globo" (p. 2), dá a palavra "ideia" como campeã nas reportagens do jornal pós-adesão ao acordo, em janeiro. Sob o título "Um jornal de 'ideias'", faz até ranking:

"O termo ganha, até, de palavras comuns como a 'plateia' (sem acento) dos espetáculos do Segundo Caderno e do Rio Show; a 'consequência' (sem trema) das análises de especialistas nas editorias Mundo e Economia; as belas 'joias' (sem acento) do Ela; ou a fiscalização da 'infraestrutura' (sem hífen) pública pelo Rio ou pelo Jornal de Bairros".

Editor do cultural Segundo Caderno, Artur Xexéo se diz surpreso:
- Pensei que as palavras mais populares da nova ortografia seriam "estreia" e "plateia". Mas "ideia" dá de dez. Só no horóscopo aparecem umas três "ideias" por dia.

Quem sabe o excesso de uso no campo simbólico traia uma (inconsciente) ausência prática. Como diria Elio Gaspari, se alguém tiver três ideias novas por semana, contrata que é gênio.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Lula conta como perdeu o dedo

O relato me foi dado por Luiz Inácio Lula da Silva às vésperas do carnaval de 1992:

"Quando sofri acidente no trabalho, em 1963, estava empregado na Metalúrgica Independência, de São Bernardo do Campo. As condições de trabalho eram ruins e, para piorar, tudo ocorreu às duas, três da madrugada. Com um pano, tentando conter o sangue, tive de esperar o início do expediente, às seis, para ser atendido pelo médico da empresa. Alguns meses depois da cirurgia, recebi indenização, 371 mil cruzeiros na época. Havia, então, certo respeito em casos de acidente, o sistema previdenciário não estava tão ruim como agora.
De lá pra cá, a saúde e a segurança continuam sendo tratadas pelas empresas como se não fosse possível haver boas condições de trabalho e também produtividade. A lucratividade é colocada acima de um bom sistema de segurança porque, para as empresas, o que importa é o trabalhador produzir a todo custo, esteja ou não em um local ruim, sob condições precárias e prejudiciais à saúde."

Lula estava no turno da madrugada, quando um colega de torno cochilou de cansaço e soltou a prensa. A máquina não foi criada para a proteção, só produção. Transcrevi o trecho inicial em que ele recorda o episódio, em fevereiro de 1992, para a Revista INST, bimestral do Instituto Nacional de Saúde no Trabalho, da Central Única dos Trabalhadores. Entre 1991 e 1993, atuei no órgão da CUT como editor. A entrevista saiu na edição 7, março/abril de 1992, ano 2, p. 4.

O relato vale pelas circunstâncias, nem sempre lembradas (em 89, disseram até que Lula perdeu o dedo de propósito, para mamar no INSS). E vale pela forma.

Uma entrevista pode ser transcrita como:
1) pingue-pongue tradicional (perguntas + respostas),
2) respostas antecedidas por pequenos títulos (sem as perguntas que as provocaram),
3) texto em 1a pessoa, como se o entrevistado o tivesse escrito.

A 3a opção é útil se desejamos tom menos frio ao conjunto. Não é, claro, texto de punho, mas discurso editado e com tema pontual. Como qualquer entrevista que se lê por aí.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Ponto de ônibus é cultura?

Um poste indicativo de ponto de ônibus foi retirado da Avenida Aclimação, em São Paulo, hoje de manhã.

Há uns meses, já havia sido retirado da calçada em que a imobiliária Marc edificava sua nova sede. Pulara para duas casas acima, mas em seguida ali se ergueu uma agência do Bradesco. O ponto foi então realocado até o endereço ao lado. Há duas semanas o poste simplesmente sumiu de lá, durante as obras para instalação de uma loja da Hering. Há dois dias a Prefeitura pôs novo poste indicativo. Hoje, 7h30, não estava mais lá.

Como se sabe, atrapalha os negócios.

O serviço de atendimento da Prefeitura anotou a ocorrência, não sei se ficará por isso mesmo. Mas quem pegava ônibus ali ficou a distâncias demasiadas do ponto anterior e posterior àquele.

Fato insignificante, o ponto de ônibus que sumiu comunica um traço cultural, secular e muito nosso.

O interesse público cede ao menor nojinho privado. Não é nada, não é nada, o pouco é sempre muito.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Trapalhadas tipográficas

Sei que é irritante quando pegam um erro de digitação para condenar um autor ou uma editora. Pois está para ser inventado avanço tecnológico e revisor vigilante que evite o erro involuntário e acidental. Mas até um erro tipográfico é constrangedor quando dificulta o entendimento.

Euclides da Cunha (1866-1909) virou noites em 1902 para reparar 80 vacilos de impressão e de revisão nos 2 mil exemplares de Os Sertões (no total, 160 mil correções a canivete e tinta nanquim). Nada se compara, no entanto, ao deslize da livraria Garnier naquele mesmo ano, com a 2a edição de Poesias Completas, de Machado de Assis (1839-1908).

As obras da editora eram impressas na França. Na página VI do prefácio, o tipógrafo teve a infelicidade cósmica de trocar a letra e por um a do verbo “cegar” do trecho “a tal extremo lhe cegara o juízo...” Assim, no mais-que-perfeito do indicativo, o resultado foi uma cegada. Com a inicial, é claro.


A linguagem de Felipão


Felipão demitido do Chelsea por limite de linguagem. A tese já se firmou na mídia, alimentou releases de escolas de inglês e foi bancada por gente insuspeita, como Tostão (caderno Esporte, na Folha de S. Paulo de hoje, D3), e de quem, mesmo quando fala de outros parece justificar a si mesmo, como Vanderlei Luxemburgo (programa Bem Amigos, SporTV).

Tostão: "Felipão é um craque na conversa ao pé do ouvido, com o braço por cima do ombro do atleta, quando diz palavras carinhosas, técnicas e francas. Por causa da língua, certamente teve muitas dificuldades para fazer isso, mesmo que tenha sido um ótimo aluno de inglês. Além disso, conversa ao pé do ouvido não dever ser um hábito na Inglaterra".

Luxemburgo: "O problema do Felipão é a maneira de envolver os jogadores no projeto. Ele depende do idioma da maneira como ele passa. Ele fala inglês, mas não domina e fica na dependência de como os jogadores vão absorver o que ele diz"

Dá para tirar sarro da súbita consciência linguística dos formadores de opinião. Mas seria de todo modo arrogância considerar irrelevante o que eles dizem. A intimidade com um idioma, qualquer um, é incapaz de recompor a riqueza da "língua de chegada", e o que a comunicação cotidiana depende de interstícios, entrelinhas, olhares e gestos. Se Felipão foi vítima disso ou de sua particular combinação de acolhimento e truculência, só ele poderá dizer.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Acordo ortográfico: "para" sem acento

Folha de S. Paulo de hoje foi vítima do acordo ortográfico já na capa.

A chamada mostra que não é todo exemplo que dá a entender de primeira que o “para” é forma verbal, não preposição. Afinal, o que se está dizendo é que a montadora dá férias a 7 mil operários e a uma fábrica? Ou que dá férias aos trabalhadores e paralisa a unidade no ABC?

A queda do sinal diferencial de “para” jogou para o contexto a fatura do entendimento. A reforma de 1971 fez o mesmo com “sede” (querer água) e “sede” (local), que tinha acento e desde então lançou ruído sobre frases como “A sede de vingança está no coração”, muito citada nas palestras de Evanildo Bechara. Mas todo mundo sobreviveu.

O título do jornal tem o mérito adicional de nos lembrar que as mudanças de grafia terão impacto distinto.

Umas serão questão de hábito – um incorporar à custa de treino, que está na extinção do acento em ditongos ei (ideia) e oi (asteroide), e do trema.

Outras só vão armar confusão, como as regras do hifen.

E há os tributos ao contexto, como "para". Por um tempo, vamos bater cabeça em algumas sentenças. Mas não será um deus nos acuda, nem a Mercedes estará melhor preparada para a crise global por causa disso.

O fato é que a interpretação do título não é imediata. Como todo jornal quer sempre comunicação imediata, seria preferível outra formulação, não? Ou isso é cisma barata? Das que só interessam a tecnocratas do consumo, que sempre tomam por baixo a massa encefálica da raia que alimentam. Talvez a imprensa é que subestima a capacidade de esforço adicional de seus consumidores, e sua sede (não "sede") de decodificação imediata seja não só infundada como neurótica.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O bom gerundismo

A locução “vou estar + gerúndio” é usada de forma viciosa Brasil afora, mas ela pode ser legítima quando:

1) comunica a idéia de uma ação que ocorre no momento de outra.
"Enquanto você estiver no estádio, vou estar vendo novela” é adequada ao sistema da língua.

2) há verbos que indiquem processo: “amanhã vai estar chovendo” ou ações contínuas: “amanhã vou estar trabalhando o dia todo”.

Quando evitar o gerundismo

Usar a locução com gerúndio ("vou estar falando com meu chefe") vira um problema quando não queremos comunicar a idéia de eventos ou ações simultâneas, mas falar de ação pontual, em que a duração não é fator dominante.

“Vou falar” dá idéia de afirmação pontual, não de ação em curso.

“Vou estar falando” se refere a um futuro em andamento.

É no mínimo forçado usar uma forma verbal com valor de outra – falar de ação isolada, que se encerraria num ato, como se fosse contínua.

POR QUE O GERUNDISMO FICOU TÃO POPULAR

Ao adotar o gerúndio numa construção que não o pedia, a pessoa finge indicar uma ação futura com precisão, quando na verdade não o faz. Não quer dizer de forma direta que vai resolver uma questão ou definir uma data para fazê-lo. Mas não quer ser deselegante.

Ela se vê como parte de uma burocracia, não tem o poder de decidir. Quem usa intui que ela é ótima quando não se quer comprometer com alguém e ao mesmo tampo parecer mal-educado.

COMO EVITAR O GERUNDISMO

Com a locução com gerúndio, qualquer um evita amarrar compromisso.

Por isso, por trás da aparente natureza sintática, o fenômeno tem implicações semânticas e pragmáticas – seu sentido diz algo sobre a própria cultura brasileira.

Só se evita gerundismo aprofundando o diálogo. Não deixando dúvida sobre o que dizemos e o que nos dizem.

A superficialidade não está em usá-lo, mas em aceitar respostas imprecisas.